João, o sambista, com toda a corda e bossas
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 10 de janeiro de 1987
"Meu samba sempre foi tirado do peito
Quando sai, já sai com meu jeito,
Com malícia e opinião
Meu samba sempre foi mostrado direito.
Por favor, exijo respeito
Com a cor do meu pavilhão."
("Primeira Mão", João Nogueira/Paulo César Pinheiro)
Na quinta faixa de seu novo lp (RCA, 103.0679, dezembro/86), João Nogueira faz a profissão-de-fé acima transcrita em epígrafe. Afinal, como bem observou Antônio Carlos de Athayde, nos versos de Paulinho Pinheiro está resumido o sentido do trabalho deste sambista, sempre com malícia, opinião e determinação, opção clara pelas melhores e mais verdadeiras formas do samba com que chega agora ao 13º elepê em 16 anos de carreira.
Desde quando o paranaense Adelzon Alves, produzindo o histórico elepê "Quem Samba fica...", em 1971, incluiu o então desconhecido João Nogueira com seus sambas "Mulher valente é minha mãe" e "O homem de um braço só" (homenagem a Natal, presidente da Portela, já falecido), deu para sentir as potencialidades deste sambista. Lembro-me bem que, em minha casa, ouvindo o disco com alguns amigos entusiastas pela boa MPB - Nireu Teixeira e Jaime Lerner, entre outros - as faixas de João nos chamaram a atenção. E Nireu, que é um cronista de mão cheia e que sabe das coisas da boa música, apostou: "Esta Nogueira vai dar certo". Não deu outra coisa: autêntico, coerente, sem afastar-se de uma linha de extrema brasilidade, João Nogueira é hoje o nosso grande sambista, não apenas um herdeiro de Noel Rosa (1910-1937) - totem mediúnico que tantos buscam - mas um defensor da música de raízes, o que o levou a idealizar, fundar e presidir o Clube do Samba - que há anos vem encarando de frente as vicissitudes de todos aqueles que preferem ficar com seu povo, contra os modismos importados e a facilidade da arte comercial.
De origens musicais - seu pai, João Batista Nogueira, foi advogado e músico, chegando a participar como violonista do regional de Rogério Guimarães, João (Rio de Janeiro, 12/11/1941) aprendeu a gostar da boa MPB desde a infância. Sua irmã, Gisa, é também boa cantora e compositora e embora tenha gravado alguns discos acabou abandonando a carreira. Aos 17 anos, João passou a freqüentar o bloco carnavalesco Labareda do Meyer, do qual chegou a ser diretor. Por essa época, seus sambas eram conhecidos apenas pelo pessoal do bloco. Através de um deles, Airton Silva, filho do saxofonista Moacir Silva (então diretor da gravadora Copacabana), conseguiu em 1968, gravar sua composição "Espera, ó nega", acompanhado por conjunto de samba que, depois, passaria a ser chamado de Nosso Samba. Seria Paulo Valdez, compositor e filho de Elizeth Cardoso, quem levaria para sua mãe outra das músicas de João, "Corrente de Aço", com a qual começou a ser conhecido. Depois de sua participação no lp pau-de-sebo "Quem Samba Fica..." (onde estavam outros talentos emergentes da época, como Natinho da Ilha), João passaria para a Portela, vencendo um concurso com "Sonho de Bamba", gravado em 1972, mesmo ano que fez um compacto com "Espelho" (parceria com Paulo César Pinheiro) e "Valsa Feliz". Em 1974, finalmente, o primeiro lp ("Vem que tem", Odeon), em que se destacavam parcerias com Paulo César Pinheiro ("Mineira") e Claudinho Jorge ("Chorando Pelos Dedos").
Nestes últimos 12 anos - e mais doze elepês, João acumulou sucessos e uma obra marcante, na qual não ficou apenas no sambão, mostrando uma sensibilidade em diferentes estilos (por exemplo em "Gaivotas").
Sempre gravando com bons músicos, um repertório do mais alto nível que não fica apenas em suas composições. Por exemplo, o lado A abre com "Boteco do Arlindo" (Maria do Zeca/Nei Lopes), com um clima de alegria, dentro do Pagode - movimento que, sem este título, sempre teve em João um dos mais fervorosos defensores. A segunda faixa tem uma ligação das mais afetivas: "Sonho de Natal", parceria com Paulo César Pinheiro, como qual o Grêmio Recreativo Escola de Samba Tradição (dissidência da Portela, por força dos desentendimentos havidos internamente) sairá no Carnaval-87, no grupo I-B, depois de subir, sempre em primeiro lugar, do 2-B e do 2-A. Com o baiano Edil Pacheco, é a parceira de "Bahia Moreno" (em 1985, juntos já haviam feito o afoxé "De Amor é Bom"). Outro delicioso pagode, irreverente, é "Eu Não Falo Gringo", parceria com Nei Lopes, gozação bem-humorada, em cima da rapaziada que abandona os seus valores para cultuar as coisas importadas. O pianista Cristóvão Bastos (que divide com Neco os arranjos do disco) é o parceiro de Paulinho Pinheiro em "Figurança", sutil ironia de tipos que a gente encontra pela vida, farsantes que não passam de malandros sem categoria. Encerrando o lado A, um samba-canção de linda poesia e inspirada melodia de Luiz Roberto, violonista, arranjador, integrante do conjunto Os Cariocas em seus últimos anos: "Poeira da Idade". Um samba-canção com forte dose de lirismo, falando do reencontro da vida e ao qual João dá uma interpretação das mais inspiradas. Enriquecendo ainda mais esta faixa, a participação do gaitista Maurício Einor, bordando a linha melódica com muita inspiração.
Um compositor que raramente falta nos discos de João Nogueira é Luís Grande, seu parceiro em "Malandro 100", que na harmonia traz a intervenção do grande bandolionista Joel Nascimento.
Outro compositor gravado por João: Roque Ferreira, autor de "Triste Regresso", samba em tonalidade menor, repleto de nostalgia. Em seguida vem aquela faixa que consideramos a melhor do disco - e que entrou em nossa relação das 10 mais belas canções de 1986 (O Estado, 4/1/87): "Tô Pianinho", parceria com Luís Carlos da Vila. Samba de estilo "picadinho", gostoso, de andamento miudinho. Fala, com extremo humor, do indivíduo que troca a vida de tipo mulherengo para a de homem fiel. E jura:
Não quero festa, nem seresta
Não vou no samba há um tempão
Tô pianinho/Outro amor, comigo não.
E, encerrando o disco, "Primeira Mão", um samba-manifesto, onde João e Paulinho Pinheiro deixam explícita sua ideologia estética.
LEGENDA FOTO - João Nogueira: em defesa do samba
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