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Aramis

"Jungle Fever", maravilhosa trilha de Steve para Spike

A excelente recepção que a trilha sonora de "Jungle Fever" - o novo filme de Spike Lee, lançado na primeira semana de julho em 636 cinemas dos Estados Unidos, após ter sido levado ao último festival de Cannes - vem encontrando (com)prova não apenas o talento de Stevie Wonder, como um fato absolutamente original: como pode um cego de nascença criar músicas tão bonitas e ajustadas para um produto visual? Há doze anos (1979), num vigoroso álbum duplo - "Journey Through The Secret Life of Plants", Steveland Judkins (Saginaw, Michigan, 13 de maio de 1950) - seu verdadeiro nome - já oferecia uma notável sound track para um filme que, ironicamente, acabou não sendo realizado. Ficou, entretanto, o trabalho sonoro, que lançado no Brasil pela extinta Top Tap, aqui destacamos na época - incluindo-o como um dos melhores álbuns daquele ano. Em 1984, Wonder acrescentaria a sua coleção de prêmios (entre os quais 16 Grammy), o Oscar de melhor canção: "I Just Called To Say I Love You", da trilha de "A Dama de Vermelho" (The Woman In Red, de Gene Wilder) - que foi sucesso internacional. Um dos mais conscientes artistas negros - em 1985, era um dos idealizadores do show "We Are The World"(em benefício da vítimas da fome na Etiópia) campanha internacional antiapartheid na África do Sul - Wonder acabaria, naturalmente, atraído pelo cinema americano dos últimos anos, vem sabendo realizar. Afinal, assim como o autor de "Faça a Coisa Certa" e corajosamente, denunciando a discriminação racial, Wonder sempre se preocupou em gravar canções condenando a segregação racial como "It's Wrong Apartheid" e ao receber o Oscar por "I Just...", em 1985, dedicou a estatueta ao líder negro Nelson Mandela, que só viria a ser libertado no ano passado. Wonder foi também um dos líderes do movimento pela criação de um feriado nacional nos Estados Unidos em homenagem a Martin Luther King (1929-1968) e, há 8 anos, quando o senado americano votou a criação da lei aprovando o feriado (comemorado na terceira segunda-feira de janeiro) Wonder estava nas galerias, acompanhado da viúva de King, Coretta, e de seu filho. Segundo o amplo noticiário distribuído pela Motown/BMG - que lançou a trilha de "The Jungle Fever" há duas semanas, com uma elogiável promoção coordenado pela competente Marina Ghiaghroni, Wonder interrompeu as gravações de um álbum-solo, "Conversation Piece"(*), iniciado em março, para agilizar "Jungle Fever" - que no início do mês já estava em 15o. lugar entre os Top Rhythm & Blues e em 26o. lugar na parada dos Pop Top álbuns da "Billboard" (data de capa, 6/7/91). Stevie Wonder tem um público fiel, - e que garantirá um natural consumo deste álbum extremamente caprichado, que como disse o bom amigo Antônio Gonçalves Filho ("Folha de São Paulo", 7/7/91), desde "songs In The Key Of Life" (1976), não produzia um manifesto tão dançante. "Prova que não é preciso ser Carla Bley ou Charlie Haden, os radicais inventores da Liberation Music Orchestra, para protestar contra o racismo, as drogas e o conformismo burguês". Depois de mostrar a explosão racial num bairro negro em "Faça a Coisa Certa" e valorizar os músicos negros no jazzístico "Mais e Melhores Blues", em "Jungle Fever", Lee conta uma história de amor entre Flipper Purify (Wesley Snipes), um arquiteto negro, bem sucedido, casado, com filhos, com sua colega de trabalho, solteira, com um namorado firme. Angie Tucci (Annabela Sciorra), que é branca. Flipper, que trai a mulher pela primeira vez, acaba sendo expulso de casa. Angie leva uma surra do pai. E o conflito se generaliza. Quando Spike Lee narrou a Wonder as imagens de seu filme (o compositor gosta de cinema, pedindo sempre aos amigos que lhe descrevam os filmes), Stevie aceitou a proposta de fazer as músicas, mas antes chegou a sugerir que Lee poderia dispensar a música, inclusive a trilha incidental do trompetista Terence Blanchard (que já havia colaborado na banda de "mais e Melhores Blues"). Para justificar que o filme poderia prescindir de música, havia um argumento forte: é que ele homenageia o jovem negro Yusuf K. Hawkins, assassinado há poucos anos no bairro branco de Bensonhurst, em Nova York. Arguto observador, Antoninho Gonçalves escreveu que a própria letra da música-título - "Jungle Fever", remete o ouvinte à "Black Boys/White Boys" o hino contra o racismo do musical "Hair" (1968). Todos foram criados da mesma forma Ao diabo com vocês, seus ignorantes Tentando nos reduzir a estereótipos Desenvolvendo uma trilha em que reverencia desde Duke Ellington (em seu chamado "jungle style", que patenteou num de seus melhores álbuns) até os "rap" ao estilo do grupo Sugar hill Gang (na faixa "Each Other's Throat"), Wonder soube aproveitar todas as nuanças que as imagens criadas por Lee oferecem. Steve se disse entusiasmado em relação ao enredo de "Jungle Fever": - "Há muito que pensar em torno das pessoas em situações extremas, que você tem que conhecer como seres humanos. Gosto muito de "Do The Right Thing" mas acho que "jungle Fever" é o melhor filme de Spike. As 11 canções que Stevie fez para este filme - ainda sem data de lançamento no Brasil - refletem tanto o clima amoroso do casal black & white quanto as conseqüências do preconceito que a sociedade tem pelo [romance] dos dois. Assim, "Fun Day" fala do encontro, da descoberta do amor, enquanto "Queen in the Black" reforça a situação. Já "These Three Words" (a referência é a expressão "I Love You"), é como uma bela declaração de amor. "Each Other's Throat, pautua um momento de violência enquanto "If She Breaks Your Hear" é o lamento da secretária branca que acaba de perder o seu amor. Enfim, um trabalho sonoro que antecipa um filme que promete muito. Stevie Wonder, lucidamente, chamou atenção para a importância deste filme que fala das relações inter-raciais - "pois é triste saber que não se pode gostar de outra pessoa por causa de diferenças raciais. Haverá de chegar o dia em que ouviremos um líder dizer: "declaro, que, a partir de hoje, todas as pessoas, independentemente da cor de sua pele, são americanas, sejam brancas, negras, amarelas ou pardas".
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Música Clássica
4
21/07/1991

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