Nas memórias de Aguinaldo a guerra da Lapa (a do Rio)
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 06 de abril de 1986
Quando Rubem Braga e Fernando Sabino criaram a Editora do Autor no início dos anos 60, a intenção era publicarem apenas seus livros "E de alguns amigos" como nos diria Sabino há algum tempo. Mas o sucesso foi tão grande que começaram a aparecer originais de tanto valor que em pouco tempo a Editora do Autor tinha um respeitável catálogo - transferido posteriormente para a editora Sabiá, que acabou adquirida pela José Olympio. Entre os inéditos que Sabino não resistiu em lançar estava um garoto de 17 anos, nordestino, chamado Aguinaldo Silva. Seu "Cristo Partido ao Meio" foi uma das revelações literárias da primeira metade dos anos 60 - e com sua publicação Aguinaldo veio para o Rio de Janeiro.
No Rio de Janeiro, Aguinaldo não encontrou nenhum mar de rosas. Afinal, no Brasil, um livro publicado e elogiado pela crítica não significa dinheiro no banco e assim o garoto teve que batalhar muito. Foi jornalista, atuando por anos na reportagem policial, sofreu a barra do período mais brutal da ditadura e conheceu a fundo um Rio de Janeiro de misérias, perseguições, torturas - que um outro escritor de igual sensibilidade, o curitibano Wilson Bueno, também viveu.
Hoje, Aguinaldo Silva é um dos mais requisitados roteiristas e autores de novelas. Foi quem escreveu a maior parte de "Roque Santeiro" - apenas iniciada e concluída por Dias Gomes - e já fez roteiros para filmes como "República dos Assassinos" (sobre o Esquadrão da Morte), "Águia na Cabeça", "Prova de Fogo" e mesmo duas comédias para Renato Aragão: "O Cangaceiro Trapalhão" e "Os Trapalhões na Arca de Noé".
Seus romances já passam de dez - "Canção de Sangue", "Geografia do Ventre", "No País das Sombras" etc. A literatura de Aguinaldo Silva, 42 anos, é dura e forte - de tintas reais, sem meias palavras.
E aos seus romances - muitos quase-reportagens do submundo carioca ou aos roteiros que chegaram à televisão ("As Tias" e "Padre Cícero", os dois em parceria com Doc Comparato), sem falar em suas peças de teatro ("As Tias", "Brasil Dourado" e "Isadora e Oswald"), Aguinaldo acrescentou agora um colorido, sincero e esplendoroso livro de toques autobiográficos: "Memórias da Guerra" (Record, 168 páginas, Cz$ 38.900).
Que guerra é essa de que fala Aguinaldo Silva? O autor se detém, nestas suas memórias, principalmente em sua passagem pelo bairro carioca da Lapa que, devidamente recriado, assume tons verdadeiramente míticos: a Lapa, aqui, é transfigurada numa espécie de território livre, e deixa de ser literária, geográfica ou histórica, para, como diz João Antônio na orelha do livro, ser "um bairro social e interior ao mesmo tempo", no qual desfila toda "uma humanidade inconveniente ao estabelecimento" - prostitutos dos dois sexos, bicheiros, vagabundos, guardadores de carros, políticos corruptos conluiados a contraventores, cáftens, pistoleiros profissionais - enfim, "uma Lapa e um Mangue ao interior e sem complacência e um encarar profundo do chamado lixo humano do bordel, da birosca, da rua, da cadeia".
Só que, à diferença de outros livros do gênero, em "Memórias da Guerra", Aguinaldo Silva "não descreve os enfiados e escondidos do submundo como um escritor vindo de fora, a passeio ou a turismo"; demonstrando uma incrível coragem de se expor (ele declarou a propósito deste livro que, de tanto se expor, "um dia acabará invisível"), Aguinaldo relata, nestas suas memórias, a história de suas próprias relações com os personagens desta vasta e bizarra galeria. E o faz sem esconder absolutamente nada. De tal modo que, embora não fique suficientemente traçada no livro a fronteira entre o que é ficção ou realidade, alguns textos resultarão para muitos, no mínimo, polêmicos.
Um livro honesto. Corajoso. Emocionante.
LEGENDA FOTO - Desde a adolescência, Aguinaldo Silva recolheu material que usa, agora, falando sobre a Lapa.
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