No rosto da selva, o verde canto de Jesus
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 22 de fevereiro de 1986
Há três anos, num álbum tão importante quanto inédito, Thiago de Mello, poeta amazonense, desde 1978 de volta ao Brasil após anos de exílio, gravou "Mormaço na Floresta", coleção de poemas extraídos dos seus livros mais conhecidos ("Faz Escuro Mas Eu Canto", "Os Estatutos do Homem", "Vento Geral" e "Canção do Amor Armado"), além, é claro, dos textos inéditos na época.
Apesar da qualidade e importância deste documento, produzido por Marilda Pedroso para a Sigla/ Som Livre, o disco ficou poucos meses em catálogo e hoje é raridade - como são, infelizmente, quase todos os trabalhos especiais que a Sigla tem produzido - "Os Mineiros", "Guia das Ruas de Salvador" com Jorge Amado, antologias poéticas de João Cabral de Mello Neto e Ferreira Gullar, sem falar no recém-lançado - mas pouquíssimo encontrado nas lojas - "A Música em Pessoa", magnífica realização de Elisa Byington e Olívia Hime - e ao qual dedicamos uma página há poucas semanas.
Se mesmo um poeta famoso e conhecido como Thiago de Mello teve o seu álbum praticamente ignorado, o que dizer, então de um trabalho independente, sem qualquer esquema de comercialização, como o realizado pelo poeta João de Jesus Paes Loureiro ("Rostos da Amazônia"), gravado na Sonoviso no ano passado, com belíssimos temas musicais de Sebastião Tapajós, também responsável pela produção e direção?
Paraense como João de Jesus, Sebastião Tapajós é hoje um de nossos maiores violonistas e compositor de mão cheia. Com mais de 20 lps gravados aqui e no Exterior, regulares temporadas na Europa, Sebastião tem profundas ligações em Curitiba - cidade onde residiu por alguns anos e onde mantém grandes amigos.
Amigo, antes de tudo, Tião estimulou João de Jesus Paes Loureiro, professor de Estética da Universidade Federal do Paraná, nascido em Abaetuba às margens do Tocantins, autor de teatro premiado com a peça "lha da Ira", galardeado também por seu livro de poemas ("Altar em Chamas", 1983), a registrar em disco uma coletânea de seus poemas.
Disto resultou um álbum magnífico, capa dupla, com fotos de Luiz Braga, acompanhado do encarte trazendo os poemas nos quais Jesus Paes fala dos mistérios, belezas e segredos da Amazônia.
Como outro poeta (e compositor) paraense, o vigoroso Vital Farias em seu "Saga da Amazônia" (lp "Sagas Brasileiras", Polygram, 1982); Paes Loureiro denuncia em "Rostos da Amazônia" a ação predatória do homem na Selva Amazônica:
As monetárias mãos/ cravos do latifúndio
rasgam o rosto da terra/ As monetárias mãos
Remos do latifúndio/ rasgam o rosto das águas
As monetárias mãos/ balas do latifúndio
rasgam o rosto dos homens.
Entre cânticos da terra, da flora e fauna, do romance das Icamiabas, todo o lado B do álbum é reservado "A História Luminosa e Triste de Cobra Norato", como uma homenagem "aos que, na Amazônia defendem a vida" - e na qual, tomado por tema a obra-prima que Raul Bopp publicou há 53 anos passados: "Cobra Norato". Gaúcho de Tupaceretã, falecido em 2 de junho de 1984, aos 76 anos, Bopp, diplomata, jornalista, aventureiro em sua mocidade - e um dos grandes nomes do nacionalismo na poesia, fez de "Cobra Norato" o grande canto da Amazônia - sobre o qual João de Jesus Paes Loureiro, reconstrói agora um longo poema, repleto de imagens da maior força e beleza.
"Rostos da Amazônia" é um registro poético com gosto de selva, sabor de rio e a alma de uma imensa região - tão bela quanto ainda desconhecida de todos nós.
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