A noite dos desesperados
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 09 de dezembro de 1985
Ao redor da vida do homem
há certas caixas de vidro
dentro das quais, como em jaula
se ouve palpitar um bicho
(João Cabral de Melo Neto)
Morte, angústia, solidão. Temas que pela própria condição humana são seguidamente revisitados em todas as formas da criação artistica: na literatura , no teatro, na dança, nas artes plásticas e, natural (principalmente) pelo cinema . Assim, o olhar que a câmara/olho humano pode fazer desta trilogia é tão ampla e aberta quanto o próprio mundo. E quando um cineasta que acostumou um (fiel e grande) público a um cinema up to date politicamente de esquerda , em que os fascistas são vilões e chega a existir um divisão maniqueista entre o poder da direita e a luta da esquerda , ao revelar-se em toda uma impressionante força humana, num grito de dor e desespero, a surpresa é grande.
É isto ai! "Um Homem, Uma Mulher, Uma Noite"(Cine Astor, 5 sessões) é no mínimo, um filme dilacerante. Um filme de câmera, no qual embora a fotografia do argentino Ricardo Aronovich capte imagens bonitas de uma Paris sempre turística, faz muito mais uma viagem ao interior dos personagens (e conseguindo chegar ao espectador) do que qualquer proposta de cartão-postal. "Clair de Femme", uma co-produção da França e Itália de 1979, - e que nos chega portanto com 6 anos de atraso - é um filme visceras sentimento-dor. Em nenhum momento, Constantin Costa Gravas, 53 anos, concede ao humor, ao sorriso, mesmo a esperança - apesar de não ter um sentido nihilista.
Como nos filmes que celebrizaram o italiano Michelangelo Antonione ("O Grito", 57; "A Aventura", 59; "A Noite", 60 e "O Eclipse, 61), os persongens centrais deste "Um Homem, Uma Mulher, Uma Noite" fazem uma descida ao inferno na tentativa de uma libertação interior. Michel (Yes Montand), um homem de meia idade e Lydia (Romy Schneider), uma mulher sozinha, na dor da perda do filho único, em acidente provocado pelo marido (que vive em estado de choque, na casa da mãe), de um encontro inesperado na praça Saind Michel, envolvem-se numa longa noite de amor, separação, dor, desespero e reencontros. Ao longo desta noite - na qual ao final, se entende a razão pela qual Michel foge de sua casa e tenta, em vão, uma viagem para Caracas - se (re)descobrem as coisas da vida, os pequenos fatos que fazem o ser humano buscar no próximo um fio de esperança, aquela ponte que, em tantos momentos, parece inexistente.
"Clair de Femme" não é, em absoluto, um filme fácil. É profundo e desafiante em seus longos planos, na narrativa que pode ser classificada de bressoniana -lembrado-se, aqui o estilo que o Fances Robert Bresson, 78 anos, criou em sua pequena mas maravilhosa filmografia, na qual não faz concessões e realiza obras secas e dificeis, mais irrepreencíveis ( poucas delas chegaram ao Brasil " Um Condenado a Morte Escapou" , 56; " A Grande Testemunha " , 66 e " Mouchette, a Virgem Possuída ", 67 ).
" Um Homem, Uma Mulher, Uma Noite " pode ser definido, de uma forma mais direta, como uma sequência de variações sobre a morte, a procura do outro, basicamente a solidão. Dificilmente, um filme com um tema tão huis clos, fechado em si mesmo, amargo, seria tão dignamente realizado se não tivesse interpretes seguros. Yvens Montand, 58 anos na época da realização do filme, compõe um homem amargurado, sozinho e que tem em seu tipo, no olhar, no rosto e gestos, toda a profundidade do desespero que carrega. A austríaca Romy Schneider (1938-1982), como Lydia, tem uma interpretação tão real e sincera, que a próxima, numa trágica coincidência: pouco tempo depois das filmagens, ela perdeu o seu próprio filho - uma das causas de seu desespero e que levou a morrer, há 3 anos passados. O elenco de apoio, em curtas mas significativas atuações também dá o suporte dramático necessário: Romolo Valli como Galba, o trágico amestrador de cães; Lila Kedrova, como Sonia; Heinz Bennet como Geoges e Catherine Allegret, como a prostituta.
O filme tem um toque muito pessoal do diretor e roterista embora não esconda suas raízes literárias - no caso um dos menos divulgados textos do escritor Romain Gary (Vilma , Lutiania - 1925 - Paris, 2/12/1980), escritor e cineasta, marido de Jean Seberg (a atriz que sempre será Le Bouttle de Souffle", 1959, de Godard) e que - outra trágica ironia - suicidou-se no Bois de Bologne, em Paris, a 8 de setembro de 1979 - exatamente uma semana após "Clair de Femme" ter estreado em Paris.
Coincidências, obviamente, que apenas fazem com que o profundo simbolismo, a dimensão de vida & morte, do ser e do nada e, especialmente da fragilidade das emoções humanas que desfilam nos 105 minutos deste filme, atinjam o público com maior carga de emoção.
Uma noite dos desesperados no anseio do encontro da vida. Um filme que, a exemplo de "Le Feu Follet"(Trinta Anos Esta Noite, 1963 de Louis Malle), tem toda sua carga desenvolvida ao longo de um período fixo - menos de 24 horas - mas com a grandeza e a dimensão de toda uma vida.
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