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Aramis

A vida e a morte na barriga da criação

Na primeira seqüência, um casal faz amor num vagão-dormitório que cruza a Riviera Dei Fiore, deixando a França e entrando na Itália. Entre a belíssima paisagem que lembra os quadros de Bellini, em rápido close é focalizada a pequena e poética estação ferroviária de Vintimiglia - a terra natal do artista Franco Giglio, cujas obras hoje fazem parte da paisagem curitibana. No trem, um arquiteto, Stourley Kracklite (Brian Dennehy) e sua jovem e sensual esposa, Louisa (Chloe Webb), viajam para Roma, onde, por nove meses, ele trabalhará na montagem de uma grande exposição. A partir destas imagens inicia um dos filmes mais bonitos, simbólicos e inquietos já realizados pelo cinema - seguramente um dos dez melhores lançamentos no circuito curitibano neste ano e que embora disponível em vídeo (originalmente pela Globo Vídeo, agora no catálogo da Look), perde muito em sua redução à telinha. Lamentavelmente, "A Barriga do Arquiteto" (que também foi chamado, erroneamente, como "O Sonho de um Arquiteto"), encerra hoje sua carreira (Cine Groff, 5 sessões), quando mereceria pelo menos mais uma semana de exibição. Cinema-puro, na mesma dimensão da obra prima "Sonhos" (Dreams, de Akira Kurosawa), "The Belly of an Architect" é mais uma visão de competência do mais importante cineasta inglês contemporâneo - Peter Greenaway, 49 anos. Conseguindo unir a maior beleza estética com idéias profundas sobre o ser humano, "A Barriga do Arquiteto" mergulha na questão da (necessidade ou não) arte (em crise), da vida (e morte), das relações humanas - tudo emoldurado pelos mais belos ângulos de uma fotografia perfeita do mestre Sacha Vierny ("O Ano Passado em Mariembad"), capturando toda a beleza arquitetônica de Roma. Poucas vezes, aliás, um filme se constitui numa verdadeira aula de Arquitetura como esta obra de Greenaway, que mereceria que o competente mestre Manoel Coelho, diretor do curso de arquitetura da Universidade Federal do Paraná, programasse sua visão e debate como indispensável tarefa extra-curricular para seus alunos. Afinal, paralelamente ao desenvolvimento do roteiro preciso de Greenaway - em que simbolicamente o processo da vida (a criança na barriga da mulher grávida) se antepõe à morte (o câncer de estômago), o filme tem um "personagem" principal: o arquiteto francês Etiene Louis Boullée (Paris, 12/02/1728-06/02/1799), precursor de projetos de vanguarda, com preocupações sociais e que deixou obras das mais significativas. Stourley Kraclite, um gordo arquiteto de Chicago - analogicamente citado como símbolo do capitalismo e da carne - passa a se dedicar a divulgar a obra de Boullée, numa tarefa que se torna trágica obsessão. O filme de Greenaway discute a validade da arte, a crise dos indivíduos, a relação idealismo com o mercantilismo artístico (o medíocre arquiteto italiano Caspassiam Speckler e sua sensual irmã, Stefania, numa rede de corrupção) e o próprio apodrecimento das relações amorosas (Caspetti torna-se amante de Louisa). O equilíbrio - tão bem simbolizado pelas referências a Sir Isaac Newton (1642-1727) - que mereceu a admiração do próprio Boullée - ameaçado pelas reações humanas, a certeza da morte (referências ao envenenamento de César Augusto, tomadas dos túmulos dos imperadores romanos, a doença do arquiteto Kraclite), integra-se de forma perfeita num filme em que nenhum fotograma é desperdiçado, numa montagem das mais admiráveis do inglês John Wilson. Assim como a fotografia de Vierny captura toda uma proposta psicodramática, sem desperdiçar a estética, a trilha sonora de Win Mertens (com temas adicionais de Glenn Branca), oferece uma relação perfeita. Os intérpretes estão perfeitos. Brian Dennehy compõe um envolvente e emocionante homem em crise pessoal mas disposto a ir até o fim na realização de seu sonho - perdendo a mulher e mesmo o controle do projeto para um "latin lover" mau caráter, o arquiteto Cassini (excelente atuação de Lambert Wilson). Pequenos personagens também são significativos, compondo um universo humano que extrapolando o cenário romano oferece pontos para reflexões em qualquer dimensão. Tendo estreado na Europa no segundo semestre de 1987, "The Belly of an Architect" chega agora, 4 anos depois, com um impacto único - merecendo ser visto na tela ampla e só depois, revisto - e estudado - em vídeo.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
20
04/04/1991

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