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Aramis

O flamenco nordestino

A Espanha está babando. Fenômeno é o mínimo que se ouve dizer a respeito do trabalho e da personalidade artística de Raimundo Fagner. Criticado por aqui, quase que violentado pela perseguição feroz de alguns algozes gratuitos, esse compositor cearense se descobre em Madri, conquistando a Espanha, primeiro ponto para a ampliação universal de mercado. E Fagner não fez nada mais do que passar para a prática todas as teorias da visível influência da música espanhola (flamengo, principalmente, dentro de um canto cigano que já vinha integrando, assiduamente, a sua própria forma de criação), depois de algumas tentativas feitas a partir de discos lançados aqui mesmo no Brasil. Pedro Soler, guitarrista flamenco, participou do elepê "Quem viver chorará", de Fagner e teve uma faixa toda para si no disco "Soro", um trabalho coletivo - gráfico-musical - de todo o pessoal do Nordeste, realizado sob produção e orientação do compositor cearense. Assim, a conquista da Espanha não pode ser encarada como um fato extraordinário. Segundo Ricardo Pachon, compositor e produtor espanhol, "tinha que vir um brasileiro para a Espanha para dizer-nos que aqui tem um filão e um filão muito importante: a música cigana. Aqui tem uma coisa que possa interessar às pessoas". Foi a ressurreição de Fagner, que sofreu o desgaste natural de uma massificação imposta pela televisão e a cansativa repetição do tema de abertura da telenovela "Coração alado". Cansado, espremido pelas exigências de um mercado que forçava o despejar constante de temas de impacto ainda maior do que os que já vinham sendo consumidos. O resultado foi um disco mal acabado, sem punch e com retraída aceitação. Um fracasso, se fosse tomada como base a posição anterior em que se encontrava Fagner, no ranking brasileiros. Revolucionário que é, Fagner - mais do que ninguém - sentiu o amargor de um trabalho [mal] feito e decidiu mudar tudo. Deixou o marasmo de algumas de suas baladas mais recentes e mergulhou na pesquisa mais profunda dos motivos ciganos, que já estavam presentes - de forma subliminar em alguns casos e mais flagrantes em outros - em sua obra, desde os primeiros tempos de "Mucuripe", "Traduzir-se", esse seu novo disco é um disco cigano e Fagner consegue dar ao flamenco uma nova conotação, que certamente permitirá ao ritmo o rompimento de algumas fronteiras que ainda cercam a sua melhor difusão. Ele está fazendo um trabalho que não se reduz simplesmente a um disco. É algo que questiona tudo o que se conhece em termos de trabalho musical, uma coisa muito ampla. E não se pode dizer que Fagner abandona suas raízes brasileiras, pois o que ele faz é evidenciar ainda mais a influência dos temas flamencos na concepção musical do Nordeste, de acordo com as próprias semelhanças constatadas entre um ritmo e outro; um daqui, outro de lá. A coragem de Fagner não tem limites e ele ousou fazer um disco espanhol para o pessoal da Espanha. Ousou e venceu, a partir da participação de Mercedes Sosa, Manzanita, Camaron e La Isla e Joan Manuel Serrat (que pela primeira vez em sua carreira, consentiu em colaborar em um disco de outro artista. Pablo Milanês, Garcia Lorca, Antonio Machado, Florbela Espanca (redescoberta agora, com criações dos anos 30) e Rafael Alberti são os poetas que dão valor literário aos textos do disco. "Años", "Verde" (em clima quase carnavalesco), "La leyenda del tiempo" e "La saeta" são temas que definem o espírito que o compositor quis fazer valer no elepê, "Málaga" era um poema, cuja edição musical permanecia inédita e ainda há três temas compostos por Fagner, na Espanha: "Traduzir-se" e "Trianera", parceria com Fausto Nilo e "Flor de algodão", com Manassés - esta dedicada a superar suas velhas polêmicas com Caetano Veloso: "No chão do sertão / Araça Azul /, Manera / Fru-fru / que a dor do sertão / reluz na cor do meu azulão". E o tema-título, "Traduzir-se", foi feito sobre um poema de Ferreira Gullar: "Uma parte de mim é todo mundo / Uma parte de mim é multidão / uma parte de mim pesa, pondera / uma parte de mim almoça e janta / uma parte de mim é permanente / uma parte de mim é só vertigem". "Traduzir-se" é um disco novo. Inteiramente novo. Recupera a força que Fagner havia encostado em alguns de seus momentos mais recentes e dá uma nova amplitude a esse campo da música nordestina, na agradável fusão final. Haverá quem queira descobrir defeitos e influências alienígenas neste seu novo disco. Estes mesmos continuam, insistemente, esperando pela chegada do Papai Noel.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Nenhum
Jornal da Música
28
04/10/1981

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