O hino à vida de Lúcia Murat
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 11 de dezembro de 1989
Em 1977, no auge da repressão militar, a estudante Lúcia Murat e alguns companheiros do movimento clandestino do qual faziam parte vieram ao Paraná para fazer "sondagens" sobre as condições de luta armada. Como Lúcia tinha parentes na cidade de Palmas, região Oeste, foi para aquela cidade e hospedou-se com um de seus tios, João Vasconcelos. Apesar da discrição, as perguntas que começou a fazer aos moradores da região despertou suspeitas e o óbvio aconteceu: ela e suas companheiras seriam presas. Seriam, porque o velho João Vasconcelos, palmeirense respeitado, mesmo conservador nas idéias, anticomunista feroz, saiu em defesa da parente:
- Sobrinha minha ninguém prende. Nem que seja comunista!
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Esta é uma das estórias que Lúcia Murat, 43 anos, jornalista e TV-woman (ex-manchete), terá para contar hoje à noite, no Cine Ritz, após a projeção de seu filme "Que bom te ver viva", o grande premiado do XXII Festival do Cinema Brasileiro de Brasília e que, há duas semanas, em Fortaleza, conquistou novos e merecidos troféus, entre os quais um especial do júri oficial, a menção honrosa da Organização Católica de Cinema e o troféu "Samburá", do jornal "O Povo" - como o melhor dos 19 filmes da competição oficial.
Embora carioca, Lúcia Murat Vasconcelos, tem raízes paranaenses. Seu pai, Miguel Vasconcelos (1906-1980), nasceu em Palmas. Em 1930, quando Getúlio Vargas passou pelo Paraná, as origens gaúchas do então jovem Miguel falaram mais alto e ele se incorporou às tropas que ajudaram a colocar Vargas no Palácio do Catete. Foi para o Rio e não mais retornou. Ficaram, entretanto, em Palmas, seus irmãos - joão Vasconcelos e Maria José, esta residindo hoje em Curitiba.
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Tanto em Brasília, como em Fortaleza, ao receber os prêmios pelo seu filme, Lúcia Murat os dedicou tanto às oito mulheres cujos depoimentos formaram a estrutura deste antológico documentário, como à sua filha, Júlia, 9 anos, "com a esperança de que ela viva sempre num país em que possa escolher o presidente por voto direto".
Antes de tudo uma jornalista, no rigor dos fatos, Lúcia Murat realizou o grande filme brasileiro do ano. Desde sua primeira visão, exibido hors concours no XVII Festival do Cinema Brasileiro de Gramado (junho/89), que o impacto e a emoção deste documentário obtém uma unanimidade: comovente, esclarecedor, sereno, resgatando fatos e memória - "Que bom te ver viva", mesmo para os críticos mais insensíveis, tem seus méritos inegáveis. Em Brasília, além dos prêmios de montagem (Vera Freire) e atriz (Irene Ravache), foi triplamente consagrado: júri oficial, júri popular e de crítica. Em Fortaleza, apenas por uma diferença de 4 votos, não levou novamente o prêmio da Associação dos Críticos de Cinema do Rio de Janeiro (na qual participaram profissionais de vários estados), que deu o primeiro lugar para "Sermões", de Júlio Bressane.
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Simples em sua estrutura - da gravação de aproximadamente dez horas de depoimentos com oito mulheres que foram presas e torturadas, Lúcia e Vera Freire montaram o filme, intercalado com a interpretação magistral de Irene Ravache (com uma personagem que é, de certa forma, o alter ego da própria Lúcia Murat), "Que bom te ver viva" é um filme que se insere na linha do cinema de utilidade pública, como os documentários "Shock", de Claude Lanzmann (1985); "Le Chagrin et la Pité" (1969-71) ou "The criminal carrer of Kleue Barbie" (87) de Marcel Ophuls, exemplos do cinema documentário, jornalístico, sobre a violência e o poder. De cada uma das 7 mulheres que depõem no filme (houve uma oitava, que preferiu o anonimato, apenas enviando um texto a respeito de sua atuação de quatro anos e meio na clandestinidade, e que hoje está relcusa num convento budista), foram aproveitados poucos minutos - embora, graças a utilização do vídeo, fosse possível gravar mais de uma hora com cada uma delas (o material que sobrou será doado por Lúcia para o arquivo da Unicamp). Dispondo de um material explêndido, a montagem de Vera Freire fixou perfeita - inclusive com uma utilização da imagem congelada que dá ainda maior dramaticidade a cada depoimento. Como já registramos em comentário anterior, o filme de Lúcia é antes de tudo um hino à vida. Não existe ódio ou espírito de revanchismo entre as mulheres que foram presas, torturadas e passaram alguns dos melhores anos de suas vidas nas cadeia, devido a ação política nos anos mais duros da revolução. Ao contrário, sente-se em muitos dos depoimentos um hino à vida, a esperança, especialmente da parte das mulheres que tiveram a maternidade, ou na prisão ou posteriormente. Criméia Schmidt de Almeida; 41 anos, uma das poucas sobreviventes da guerrilha do Araguaia (onde perdeu o marido, o sogro e o cunhado), hoje enfermeira em São Paulo, teve um filho nascido na cadeia. Jesse James, 37 anos, presa em 1970 durante tentativa de seqüestro de avião, torutrada durante três meses e presa por nove anos, teve sua filha na cadeia. Maria do Carmo Brito, 44 anos, ex-comandante da Vanguarda Popular Revolucionária, torturada durante 60 dias, dez anos de exílio, hoje tranbalhando com educação, teve um filho na prisão. Maria Luiza Garcia Rosa, 37 anos, presa e torturada três vezes, hoje médica sanitarista, teve dois filhos. Regina Toscano, 40 anos, epilética e grávida, torturada aos ser presa em 1970, perdeu o filho na ocasião. Posteriormente teve três filhos e hoje trabalha no movimento comunitário. Roselina Santa Cruz, 43 anos, presa e torturada (seu irmão mais novo é desaparecido), também tem três filhos.
Essas mulheres falam sobre a vida, a luta política e suas experiências com a prisão e a tortura. A elas acrescentam-se outros depoimentos - filhos, companheiros, amigos - dentro de uma visão ampla, no qual Lúcia mostra que foi possível a estas mulheres reintegrarem-se em suas vidas, superarem traumas e trazerem uma palavra de esperança, honestamente, para que um passado recente demais ainda na retina de quem com ele sofreu, os brasileiros vão às urnas para escolher o seu Presidente. "Que bom te ver viva" é um filme de utilidade pública, uma obra contundente, imensamente importante e que o faz, por isto mesmo, o melhor filme brasileiro de 1989 - e uma lição para não ser esquecida jamais.
LEGENDA FOTO - Fotógrafo Walter Carvalho (olho no visor) e a diretora Lúcia Murat durante as filmagens de "Que bom te ver viva", o filme brasileiro do ano, em exibição no Ritz. Lúcia ali estará hoje, às 18h, para debater sua premiada realização.
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