Um filme emocionante sobre a tortura de mulheres no Brasil.
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 15 de junho de 1989
Gramado - Se estivesse em competição, "Que Bom te Ver Viva" seria o grande vitorioso desta 17ª edição do Festival de Cinema que aqui acontece. Após a projeção para a imprensa, na terça-feira (o filme será apresentado, hors concours, às 23h30 de amanhã, sexta-feira), mesmo experientes e rigorosas críticas como Susana Schield ("Jornal do Brasil") e Helena Salem ("Última Hora") e até o implacável Almir Labak ("Folha de São Paulo") não escondiam uma emoção intensa, abraçando o cumprimentando a diretora do filme, Lúcia Murat, 41 anos.
A emoção que este documentário sobre a tortura durante a ditadura militar passa é imensa e só me ocorrem dois outros filmes tão notáveis em termos de denúncia - "Cabra Marcado para Morrer", de Eduardo Coutinho (o vitorioso do FestRio, 1984) e "Terra para Rose", de Tetê de Moraes (1987, vencedor do festival de Brasília), que embora estreando agora em longa-metragem, Lúcia Murat veio com uma boa experiência na televisão e realizou um daqueles filmes de utilidade pública. É importantíssimo que sejam realizados para que as novas gerações tomem conhecimento de um período terrível de nossa vida política, ao mesmo tempo que oferece aos mais velhos a oportunidade de refletir sobre um passado recente - e cujas seqüelas nas vítimas ainda não estão cicatrizadas.
Irene Ravache, desde terça-feira em Gramado, é a única intérprete do filme. Como uma personagem - espécie de alter-ego da própria realizadora, que foi militante política e esteve presa por três anos e meio, Irene está notável. Ganharia tranqüilamente o Kikito de melhor atriz se estivesse em competição. Ela dá uma iluminada interpretação aos delírios e fantasias de uma personagem anônima, que costura os depoimentos de oito ex-presas políticas brasileiras que viveram situações de torturas.
Irene não só deu o melhor de si como atriz, como foi uma das co-produtoras neste filme de custo de US$ 100 mil.
Tendo como epígrafe uma frase do psicanalista Bruno Bettelheim, extraída do livro "O Coração Informado" (no qual estuda a tortura do campo de Auszwitz, onde foi prisioneiro) - "a psicanálise explica porque a tortura enlouquece mas não porque sobrevive" - Lúcia Murat realizou um projeto extremamente pessoal. Talvez por ser uma obra tão honesta e sincera - ela que foi presa política e, posteriormente, viveu na Nicarágua onde realizou o documentário "Pequeno Exército Louco" (1980, premiado em alguns festivais mas inédito nos circuitos comerciais) - é que faz com que "Que Bom te Ver Viva" transmita uma carga tão grande de emoção.
Ao longo de mais de um ano, Lúcia trabalhou com o fotógrafo Walter de Carvalho na elaboração deste filme, gravando longos depoimentos com oito ex-presas políticas. Para diferenciar a ficção do documentário, optou por gravar os depoimentos em vídeo, com o enquadramento semelhante ao retrato 3 x 4. Filmando seu cotidiano à luz natural, representado assim a vida aparente, ao usar a luz teatral, "para enfocar o que está atrás da fotografia - o discurso inconsciente do monólogo da personagem de Irene Ravache", explica.
As entrevistas são as seguintes: Maria do Carmo Brito, 44 anos, ex-comandante da organização de esquerda armada Vanguarda Popular Revolucionária, presa em 1970. Passou 60 dias sendo torturada, o marido de suicidou na sua frente e, em seguida, foi trocada durante o seqüestro do embaixador alemão. Passou 10 anos no exílio e voltou com a anistia. Hoje trabalha em educação e tem dois filhos.
Jesse Jane, 37 anos. Presa em 1970 durante tentativa de seqüestro de avião, passou três meses em órgãos de tortura e nove anos na prisão. Saiu em 1979, com a anistia, e hoje é historiadora. Teve uma filha na cadeia.
Estrela Bohadana, 40 anos. Presa e torturada duas vezes. Maria Luiza Garcia Rosa, líder estudantil, presa e torturadas três vezes. Regina Toscano, 40 anos, líder estudantil e guerrilheira urbana. Apesar de epiléptica e grávida, foi torturada. Rosalina Santa Cruz, 43 anos, presa e torturada junto com o marido. Seu irmão mais novo é um desaparecido. Criméia Schmidt de Almeida, 41 anos, uma das poucas sobreviventes da Guerrilha do Araguaia, onde perdeu o marido, o sogro e o cunhado. Finalmente há um depoimento anônimo, apenas narrado, de uma militante que depois de quatro anos e meio de clandestinidade e quatro anos de cadeia, seguiu um caminho místico e hoje é reclusa num convento budista.
Os depoimentos das sobreviventes da tortura são contundentes, duros, emotivos. Entretanto, não há pessimismo, rancor e ódio - e, com exceção de Jesse Jane, nenhuma delas fala em revanchismo.
"Que Bom te Ver Viva" é um filme-documento, absolutamente atual, honesto e profundo - do qual muito se discutirá. Não há ainda nenhum projeto para seu lançamento em circuitos comerciais e a própria realizadora, Lúcia Murat, diz que o trouxe a Gramado "para sentir a reação". E a julgar pela emoção (e mesmo lágrimas em muitos dos espectadores) acabou provocando uma participação política das mais importantes. Coincidentemente (e a própria Lúcia nem sabia deste fato, quando lhe entregamos o "Almanaque" de domingo passado), seu filme traz uma abordagem paralela ao que o jornalista Luiz Manfredini faz em seu livro "As Moças de Minas", que estará sendo lançado no próximo dia 27.
Se acontecer o debate sobre as relações da imprensa e o cinema brasileiro, previsto para hoje, quinta-feira, à tarde, a temperatura vai esquentar. Na segunda-feira, quando se debatia o filme "Jardim de Alah", o ator Joel Barcelos já disse cobras e lagartos contra o crítico Rubens Ewald Filho, da "Rede Globo", pelo comentário que ele fez na televisão. Muita gente não perdoa a forma rigorosa com que "Kuarup" foi recebida pela crítica nacional e os ânimos estão acirrados. Mas um debate sempre é salutar e anima o festival.
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