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Aramis

Patético discurso político.

"Ver e pensar a trágica saga de Glauco/Vlado é instaurar, em nós mesmos, uma reflexão sobre nossa responsabilidade cotidiana no processo sócio político nacional". (Fernando Peixoto, março/80). Xxx Há quatro anos, Fernando Peixoto, ator, diretor e ensaista de teatro, se confessava surpreso - mas feliz - por ter conseguido a liberação de "Ponto de Partida", de Gianfranciesco Guarnieri. Em ritmo de fábula, Guarnieri colocava o dedo na (recente) ferida provocada pelo "suicídio" do jornalista Vladimir Herzog - (1975), ocorrida nas masmorras do DOI-CODI, em São Paulo, na fase mais violenta da repressão. Numa montagem exemplar (estamos nos referindo à original e não nas outras encenações, inclusive na frustrada tentativa feita em Curitiba), "Ponto de Partida", em plena vigência do AI-5, colocava a questão de forma poética e crítica, em interpretações vigorosas de Guarnieri, Othon Bastos Martha Overback, além de revelar o compositor-cantor Sérgio Ricardo um esplêndido ator (e fazendo ainda a música-tema, lançada em compacto da Marcus Pereira, hoje raridade). Agora, com a abertura, que permitiu uma espécie de expiação teatral, com montagem de vários textos proibidos por anos, a temporada de "Patética" (pequeno auditório do Guaíra, hoje, 21h 30 min) é um evento importante. Afinal, trata-se de um texto escrito por um cunhado de Herzog (João Ribeiro Chaves Neto), que, antes mesmo de ter sido anunciada sua premiaçào no VIII Concurso de Dramaturgia da SNT, em 7/10/1977, foi confiscado pelos órgãos de segurança. O concurso do SNT - que anteriormente já havia tido problemas com a Censura (como a premiação de "Papa Higherte" e "Rasga Coração", ambas de Oduvaldo Viana Filho, premiadas e proibidas até 1979), tornou-se assim um pivô de delicada questão: enquanto um organismo do Ministério da Educação e Cultura premiava um texto, os órgãos de segurança do mesmo governo sequestravam o texto e a Censura proibia a peça. Passados menos de tres anos, "Patética" chega aos palcos: depois das leituras dramáticas (inclusive a realizada no mesmo Guairinha, há pouco mais de um ano), temos agora esta encenação profissional, com direção de um nome respeitado - Celso Nunes - e um elenco de respeitado Celso Nunes - e um elenco de interpretes conhecidos. Seria de se esperar um espetáculo inesquecível. Se tem apenas uma peça politicamente marcante. "Gostei mais de leitura". Esta afirmação ouvimos pelo menos de 5 pessoas que fora, quinta-feira, 21, assistir a estréia de "Patética". Emocionante, sem dúvida. Especialmente se consideramos que os fatos que a peça traz são verídicos - e o perigo não acabou. Emocionante e atual, portanto. Só isso já torna válida esta encenação. Mas, infelizmente, faltou um toque de maior profundidade, que um diretor da competência de Fernando Peixoto soube dar em "Ponto de Partida". Celso Nunes é um diretor veterano e com alguns sucessos. Mas, infelizmente, não conseguiu dar a comunicação, a garra que o denso texto de João Ribeiro Chaves Neto estava a exigir. E o que é mais grave: a modificação do texto original, com prolongamento das cenas iniciais e colocação de discursos políticos ao final, dando uma atualidade maior (como a questão do terrorismo contra as bancas de revistas que vendem exemplares da imprensa alternativa) pouco acrescentou. Afinal, o texto de Chaves Neto já vale pelo que contém de dramático, não necessitando de "atualização". A tortura de Wladimir Herzog/Glauco Horowitz é e recente demais, atual demais, para necessitar de novos elementos. Outro aspecto grave na direção de Celso Nunes foi a falta de maior orientação aos diretores, levando a atores menos experientes como Eurico Martins (Pedro Navarro/Valdeir) a uma interpretação ceifada e até irritante em alguns momentos. Em compensação, a substituição do elenco não apresentou problemas: Abrão Farc no lugar de Antonio Petrin, interpretando Valter Rosado e Hans Horowitz é, de longe, a melhor figura em cena. Sua interpretação é densa, profunda emocionante. Beth Mendes, substituindo a Regina Braga, consegue dar a Iara Rosa/Clara Horowitz o toque necessário para chegar ao espectador. Ewerton de Castro, no dificílimo papel de Glauco Horowitz, em suas contradições, poderia render mais se tivesse maior apoio na direção. É ainda o palhaço Bolota, que abre e encerra o espetaculo. Um destaque especial para Lilian Lemmertz, uma das melhores atrizes brasileiras, massacrada em dezenas de filmes por culpa de cineastas mediocres e fascitóides, mas, que, quando pode, dá interpretações magníficas: em "Caixa de Sombras", dirigida por Emílio Di Biase, estava irrepreensível. Agora, como Jaoana da Criméia, e Ana Horowitz, forma com Abrão Farc, a grande presença em cena. As restrições que se possa fazer a "Patética" não desmerecem, em absoluto, o espetáculo que ainda hoje deve ser visto e prestigiado. Quando várias peças se voltam analisar e discutir os negros anos da repressão mais violenta e cruel - como "Sinal de Vida", de Lauro César Muniz e "A Fábrica de Chocolate", de Ruy Guerra (ambas inéditas ainda em Curitiba), "Patética" deve ser pensada e discutida. Ao longo de suas dez cenas, Chaves Neto coloca a trajetória do casal Horowitz, judeus iugoslavos que chegam ao Brasil em 1949, estabelecem-se em São Paulo e vêem seu filho, Glauco (Wlado) ingressar no jornalismo e ter militância política. Personalidade complexa, mas consciente dos problemas sociais e políticos, Wlado se destaca na imprensa e acaba preso, torturado e morto na prisão. Seu "suicidio" provocou imensa repercussão e, para muitos analistas, foi o ponto de partida do processo de abertura política. Em quase duas horas, sem intervalo, há dez cenas. De uma forma felliniana, o espetáculo abre e fecha num circo. Uma peça dentro de uma representação - o circo que está sendo fechado, pela repressão. A música circense, emotiva, soma-se à "Dança Eslava" de Dvorak, para dar um clima sonoro emocionante. Muitos slides e música de época para situar os vários planos da narrativa. Esta marcação poderia ser mais ágil, dinâmica - e, nisto, em nosso entender, constitui outra das falhas da direção de Celso Nunes. Em dezembro de 1977, no prefácio da edição de "Patética", Fernando Peixoto chamava a atenção para um dos aspectos importantes da peça: "Patética" não é apenas, como pode parecer a princípio, a reprodução de uma estrutura já conhecida: a troupe de circo que conta uma história, cada um de seus elementos assumindo um ou mais personagens. É isto, mas é muito mais. A complexidade da estrutura ganha uma nova dimensão quando, por exemplo, o personagem principal, jornalista de televisão, está gravando um programa no qual entrevista justamente os artistas do circo que estão representando sua história. E João Ribeiro Chaves Neto, com segurança, leva o jogo ainda mais longe, quando faz com que os personagens, sendo entrevistados na televisão, também interpretem cenas da peça que estão no momento representando: a vida do próprio entrevistador. Neste instante são quatro níveis de realidade que se misturam numa leitura dialética que enriquece a narrativa dramática. Em nada disso existe o jogo pelo fogo, o efeito pelo efeito. Estamos diante de um dramaturgo realista que não hesita em pesquisar uma linguagem que rompe com certos esquemas habituais, ao mesmo tempo que se mantém fiel a seu inequívoco propósito de expor com clareza, uma tragédia de nossos dias sem qualquer tipo de apelação a inúteis ou falso rebuscamentos formais. Este não-esquematismo da estrutura, como a exatidão e rigorosa prudência de sua análise, fez de "Patética" um texto despojado e fascinante enquanto obra literária, e estimulante enquanto roteiro cênico. O espetáculo, nela, circo ou teatro ou TV, é parte orgânica de sua essência. Um instrumento para o debate de idéias. Não é, nem pretende ser, uma obra-prima definitiva e seu autor está ainda num processo de nítida evolução, mas não se limita aos circunstâncias valores de um teatro para ação e reflexão imediatas". "Patética" vale como documento. Como denúncia. Como discurso político. Como sinal de alerta e ponto de partida em termos de uma arte engajada. Um espetáculo importante a ser visto. E que, em nosso entender, teria sido muito melhor se, ao invés de Celso Nunes, fosse Fernando Peixoto a dirigí-lo. Mas, afinal, o conteúdo compensa a forma. Ainda bem.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Nenhum
Tablóide
10
24/08/1980

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