Paulo Tapajós, uma missa iluminada de canção/amor
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 02 de janeiro de 1991
Convinha, nesta primeira coluna de 1991, falar de coisas alegres, de pássaros, de música, de cores e de amizade. Jamais um obituário.
Assim, o obituário para um amigo que morreu no penúltimo dia do ano que acabou não pode ser triste. Tem que ser sem lágrimas, lembrando sua imensa dimensão, a sua grandeza de artista, homem, pai, companheiro e sobretudo, ser humano: PAULO TAPAJÓS (GOMES).
A última edição do Guinnes Book of Records já deveria ter trazido um verbete com o seu nome: o homem que por maior período de tempo, sem interrupção, trabalhou no rádio em todo o mundo. Há quase dois anos, um grupo de amigos - e como Paulo os tinha, Brasil afora! - decidiu que seus 60 anos de ininterruptas atividades nas principais emissoras do Rio de Janeiro - e especialmente na Nacional - deveria ter um reconhecimento da mais respeitada publicação existente. Assim, um imenso dossiê foi feito comprovando que desde 1928, quando ao lado de Haroldo e Oswaldo formou o trio vocal Irmãos Tapajós, cantou pela primeira vez na nascente Rádio Sociedade do Rio de Janeiro (que havia sido fundada um ano antes). Paulo iniciaria um trabalho que nunca mais interromperia: um homem do rádio brasileiro. O pioneiro que atravessou seis décadas, acompanhou a era de ouro da Rádio Nacional - na qual esteve por quase 40 anos - e morreu trabalhando: horas antes de sentir-se mal e ser conduzido a Beneficência Portuguesa, onde viria a falecer às 3 horas da madrugada de sábado, 29, estava em seu apartamento na Rua Voluntários da Pátria, entre milhares de discos, livros e pastas sobre nossa música, produzindo programas para a Rádio Ministério da Educação e Cultura, para qual, embora já aposentado, continuava a produzir várias audições semanais. Sempre com o cuidado, o critério, a honestidade e o bom gosto que o fizeram uma figura ímpar como profissional, marcando os milhares de programas que realizou - desde as superproduções dos anos 50, nos áureos tempos da Rádio Nacional, como "Quando os Maestros se Encontram", ao meio-dia dos domingos, até as didáticas séries que manteve no Projeto Minerva.
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Há exatamente dois meses, nos dias 3 a 5 de novembro, quando de retorno de Porto Alegre, Paulo e Norma pararam - como sempre faziam ao viajar ao Sul - em Curitiba, ainda tivemos a suprema felicidade de acompanhá-los nos três dias em que aqui permaneceriam. Paulo mostrava-se cansado e preocupado - o coração, este amigo inimigo que sempre bateu com maior intensidade em seu peito de modinheiro e poeta da música - vinha lhe pregando alguns sustos, mas aos quais driblava. Recusava-se a abandonar o rádio - não apenas pela paixão de toda uma vida, mas - e nisto é necessário denunciar - porque, apesar de seus 62 anos de trabalho e um reconhecimento nacional, vivia com uma aposentadoria muito, mas muito menor do que merecia - o que o impedia, financeiramente, de pedir a suspensão do contrato que tinha com a Rádio MEC - e cuja direção, criminosamente, o sobrecarregou nos últimos meses de produções extras, aos quais Paulo, com sua generosidade, aceitou - mesmo frente aos protestos de sua esposa Norma, a grande companheira que teve por 45 anos de sua vida.
Jantando em nossa casa, aqui reencontrando um amigo que fizera há muitos anos no Recife, o médico, militar e pesquisador Wilson Bóia, voltou-se a falar mais uma vez na necessidade dele escrever suas memórias - ele que, aos 77 anos (completados no dia 20 de outubro), lembrava-se com detalhes de tudo que acompanhou em sua vida tão rica de vivências, companheirismos e encontros com o que se pode lembrar de mais expressivo na cultura - não só musical, mas também literária e das artes plásticas (seu pai foi um grande jornalista e crítico de artes plásticas, que chegou a receber Caruso, para jantar em sua casa). Bóia, sempre atento a fazer biografias, chegou a combinar naquela noite um encontro posterior no Rio de Janeiro - que não sei se aconteceu - para iniciar um livro sobre Paulo, já que ele, em sua modéstia, tão característica dos imensos e maiores talentos, resistia a idéia de colocar no papel - em sua redação tão clara e profissional - fatos de sua vida.
Na noite de 4 de novembro, quando um grande amigo da família, o poeta Hermínio Bello de Carvalho, estreou no auditório Antônio Carlos Kraide, no Centro Cultural do Portão o espetáculo "Cantoria" - reunindo as cantoras Alaíde Costa e Dalva Torres - Paulo e Norma, mais a cantora Stelinha Egg, 75 anos, ali estiveram, ao nosso lado, aplaudindo a bela noite de poesias e canções que o iluminado Hermínio apresentou.
Hermínio, padrinho de casamento de Maurício, 47 anos, o mais velho dos filhos de Paulo - e também padrinho de seu filho, Lúcio, estenderia a noite, novamente em nossa residência, na qual Paulo, pela primeira vez, mostrou a imensa dor que o acompanhava há quase dois anos, desde que a morte levou em 17 de agosto, sua filha querida, a bela e suave Dorinha, cuja voz magnífica amparou o Quarteto em Cy em sua melhor fase.
Normalmente forte e evitando falar na ausência da filha - morta em pleno vigor de seus 37 anos, deixando uma neta linda - Carolina - filha do jornalista Francisco Vargas, Paulo, naquela noite, disse da tristeza, da dor e do desencanto que sentia nestes últimos dois anos. Hermínio, minha esposa Marilene e Norma - só nós, aqui estávamos - nada dissemos e deixamos Paulo falar de sua tristeza, de sua dor. Foi um momento difícil em que não havia palavras possíveis de consolo. Paulo, um homem que por mais de 50 anos foi o intérprete do belo. Do suave, do sublime em valsas e, especialmente as modinhas - e com razão, sempre se dizia que era o último dos modinheiros - parecia traduzir, naquele instante, toda a dor de um coração dilacerado. Mas foram apenas alguns minutos. Logo, após um copo d'água, o assunto passou a outra esfera e Paulo mostrava-se novamente o que sempre foi: uma pessoa iluminada, gentilíssimo ao extremo em cada observação, jamais querendo aparentar tudo o que sabia e, principalmente, que havia vivido.
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Desde que Ricardo Cravo Albim, em 1973, trouxe Paulo Tapajós para um show no Teatro Paiol, em que participava também Altamiro Carrilho e seus músicos, nasceu uma grande amizade. Foram inúmeras vezes que saboreamos suas palavras - gravando muitas delas, em fita e vídeo, mas sempre haveria alguma coisa mais para ele contar, já que uma biografia como a sua não se esgota em algumas horas de registros ou colunas de jornal (aliás, morrendo no esvaziado feriadão de fim de ano, Paulo não mereceu da imprensa nacional os obituários que uma vida como a sua justificaria). Uma das primeiras pessoas que ouvimos quando idealizamos o I Encontro de Pesquisadores da MPB (Curitiba, fevereiro de 1974) e de cuja associação criada naquela ocasião, nos sucederia na presidência, com ele estivemos em várias ocasiões e em diferentes lugares deste país: em festivais nativistas no Rio Grande do Sul (de cujos júris era uma figura obrigatória), em encontros e seminários de pesquisadores, em algumas das (muitas) homenagens que mereceu.
Embora com problemas de coração, a morte de Paulo era uma idéia inaceitável. Pessoas como ele jamais podem morrer - "são imorríveis", como disse, uma vez, o poeta Hermínio. Prefiro lembrar Paulo modinheiro, de violão, dizendo as poesias mais belas de nosso cancioneiro - como naquela manhã de domingo quando do I Encontro de Pesquisadores (Auditório Salvador de Ferrante), no qual, após apresentar algumas das mais belas jóias de nossa MPB, ouviu de outro grande amigo e pesquisador - que também já não está entre nós, o José Octávio Guizzo - uma frase que considero definitiva:
- "A alegria e emotividade que Paulo Tapajós passa ao tocar seu violão e cantar as modinhas me traz uma sensação de espiritualidade tão grande quanto um legítimo cristão deve sentir numa missa. Paulo é uma missa!"
Sim, Paulo era uma missa de paz, ternura, música e amor! Por isso, não morre. Fica encantado - junto com tantas outras almas iluminadas que deixaram melhor este mundo pelo qual passaram.
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