Pólvora no breque do samba de Kid Ligeiro
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 06 de agosto de 1980
Ramiro Carlos Rebouças é um homem sobre quem ainda espero, um dia, escrever um longo perfil. Capaz de traduzir um pouco de sua personalidade forte, seu talento musical e suas vivencias pelo mundo. Um amigo comum, o jornalista e empresário Caio Gotlieb, foi quem me apresentou a Ramiro, numa rápida visita a Cascavel, há 4 anos. Ao longo de uma inesquecível noite, Ramiro, com seu violão e voz afinada, mostrou dezenas de composições. Falou de sua vida artistica, de seu relacionamento com o pessoal da Bossa Nova, quando trabalhou no histórico Beco das Garrafas, em Copacabana, onde no Bottle's, Little's Clube e outras miniboites, no início dos anos 60, nasceu o movimento musical mais importante ocorrido no Brasil. Ramiro tocou com nomes importantes, acompanhado por um longo período uma das mais notáveis cantoras daquela época, Silvinha Telles (27.8.1934 - 17.12.1966). Ramiro é, normalmente, recatado. Não gosta de falar de sua vida pessoal e das razões que o levaram, há muitos anos, a se fixar em Cascavel, onde ganha a vida como um eficiente vendedor de máquinas agrícolas. Mas quem o ouve tocar violão, cantar e mostrar suas músicas, reconhece, imediatamente, um artista de grande força e que, por razões que mantém em segredo, preferiu ficar no anonimato. Quando fala de sua época no Rio, sente-se que de fato conheceu os personagens citados. Enfim, até prova em contrário, merece respeito e admiração.
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As músicas de Ramiro são múltiplas, Românticas, satiricas e políticas estas, até há pouco, preservadas cuidadosamente a não ser dos amigos mais chegados. Inteligente, bem-informado, se mantém ligado ao que acontece no mundo embora raramente deixe aquela cidade. Por isso, não deve surpreender o fato de Ramiro ter inscrito na eliminatória de Cascavel, na promoção "Todos os Cantos" - que Heitor Valente e Jorge Natividade, coordenam para a Sece uma música que causou o maior reboliço. O júri e os apresentadores oficiais do Festival -Léa Kessenberg e Reinaldo Camargo chegaram a serem avisados de que, quando a música fosse interpretada, seria possível até haver tiroteios, atentados, etc. E uma saída de emergencia foi providenciada. Mas nada disto aconteceu: Ramiro defendeu seu samba-de-breque, teve aplausos e vaias. No final, nem foi classificada para a finalíssima. Cada jurado deu uma justificativa diversa: uns gostaram da letra, outros da música, muitos criticaram os breques na verdade quase monólogos. E por que tanta preocupação?
Dois dias antes do Festival, O ESTADO, em sua coluna "Chumbo Grosso", já havia registrado que "Kid Ligeiro", título da música de Ramiro, estava irritando algumas pessoas importantes da cidade. A referência indireta ao assassinato do proprietário de um jornal da região, motivado por rixas políticas e envolvendo nomes de pessoas importantes da área, fez com que a música de Ramiro acabasse ganhando uma notoriedade que não teria. Afinal, seria apenas uma das muitas concorrentes no festival. Assim como a censura apenas promove uma música, as ameaças feita ao autor, também deram maior destaque à composição.
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Independente dos aspectos políticos-policiais a respeito, e mesmo a distância (já que não pudemos integrar o júri do Festival, devido a compromissos pessoais), achamos que a letra de "Kid Ligeiro"- que tanta polêmica e preocupação provocou deve ser publicada. Dentro de um prisma de pesquisa e história da música popular do Paraná, nada mais. Afinal, é do registro de episódios come este que se forma a memória musical de um País causa pela qual sempre nos batemos. Eis portanto a legra de "Kid Ligeiro", de Ramiro Carlos Rebouças.
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Fui contratado por um figurão da city
Para fazer um servicinho de matança na cidade.
Ele me disse que um cara intrometido
Incomodava a nossa ordeira sociedade
Fui ao escritório discutir meus honorários
Mas recusei sua proposta inicial
E lhe fiz crer que um trabalho de tamanha gravidade
Só exigia recompensa especial
(declamando): "E daí começamos a discutir/Proposta daqui, proposta dali/O assunto foi se alongando/Que eu resolvi por questões de ordem inflacionária/Fixar meus pró-labore em dólares".
Ele queimou-se e foi dobrando a tal proposta
Até chegar a uma quantia irrecusável
E eu como todo pistoleiro que se preza
Comecei a odiar aquele tipo miserável
Vou apagá-lo sem clemência e de maneira deplorável.
Pequei meu fusca com kits 1.600
E precavido já troquei logo de chapa
Coloquei nele uma sujinha e com o nome
De um lugarejo que não consta nem do mapa
(declamando): "Aí minha nega velha
cheia de preocupações gritou: "Cuidado Kid Ligeiro, não vá fazer bobagem/Escolha o lugar certo para o abate/Dê preferencias nas proximidades da Catedral/-
Que é por onde todo mundo passa mas ninguém Vê nada".
Achei o cara passeando na avenida
Joquei o meu carro contra o seu/na contra-mão
E ele pensando que era simples barberagem
Não viu nem de passagem o trabuco na minha mão.
(declamando): "Desferi-lhe o primeiro
disparo e a bala em simbosa trajetória
atravessou-lhe o fígado e o intestino em tres lugares, perfurou-lhe o pâncreas e foi alojar-se na pleura do pulmão esquerdo. Dei-lhe o segundo tiro na altura da garganta onde lhe fiz espantosa tancilectomia, para evitar que, no hospital, viesse a fazer declarações comprometedoras. Aplique-lhe o terceiro disparo na região cardiovascular. E constatei, com justificado orgulho profissional, que estava concluída a eutanásia".
No outro dia o Lourival anunciava
Que a dona justa já tinha pista concreta:
Que o assassino fora visto fugindo pro Paraguai
Atravessando o Paraná de bicicleta
E que apesar da correnteza atravessou em linha reta
E a dona justa em trabalhos exaustivos
Encerra o caso com um fato estarrecedor
E a conclusão que se chegou foi que o defunto
Foi abatido por um disco voador
E para fazer a deligencia espacial
Faltam recursos que o povão nem imagina
Mas a população que tenha paciencia
Que ainda vão botar as mãos naquela nave assassina
Não foram a Alfa-Centauro por falta de gasolina.
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Não é preciso ser nem um Sérgio Cabral ou Almirante, em termos de conhecimento musical, para se notar, lendo a letra de "Kid Ligeiro", que Ramiro Carlos Rebouças, embora musicalmente ligado à bossa nova, preferiu, desta vez, o estilo do grande (Antonio) Moreira da Silva (Rio de Janeiro, 1o .04.1902, ao gravar "Jogo proibido" (tancredo Silva/Ribeiro Cunha), improvisando intervalos dos versos com frases repletas, acabaria criando o gênero que o consagraria, e ao qual se deu o nome de "samba-de-breque". E o bom "Kid Moringueira", ainda forte e vigoroso aos 78 anos, dezenas de gravações, tem muitas músicas com a mesma estrutura do "Kid Ligeiro", de Ramiro. Só que, segundo alguns dos jurados de Cascavel, seus breques ficaram por demais longos. De qualquer forma, vale o registro.
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