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Aramis

Pólvora no breque do samba de Kid Ligeiro

Ramiro Carlos Rebouças é um homem sobre quem ainda espero, um dia, escrever um longo perfil. Capaz de traduzir um pouco de sua personalidade forte, seu talento musical e suas vivencias pelo mundo. Um amigo comum, o jornalista e empresário Caio Gotlieb, foi quem me apresentou a Ramiro, numa rápida visita a Cascavel, há 4 anos. Ao longo de uma inesquecível noite, Ramiro, com seu violão e voz afinada, mostrou dezenas de composições. Falou de sua vida artistica, de seu relacionamento com o pessoal da Bossa Nova, quando trabalhou no histórico Beco das Garrafas, em Copacabana, onde no Bottle's, Little's Clube e outras miniboites, no início dos anos 60, nasceu o movimento musical mais importante ocorrido no Brasil. Ramiro tocou com nomes importantes, acompanhado por um longo período uma das mais notáveis cantoras daquela época, Silvinha Telles (27.8.1934 - 17.12.1966). Ramiro é, normalmente, recatado. Não gosta de falar de sua vida pessoal e das razões que o levaram, há muitos anos, a se fixar em Cascavel, onde ganha a vida como um eficiente vendedor de máquinas agrícolas. Mas quem o ouve tocar violão, cantar e mostrar suas músicas, reconhece, imediatamente, um artista de grande força e que, por razões que mantém em segredo, preferiu ficar no anonimato. Quando fala de sua época no Rio, sente-se que de fato conheceu os personagens citados. Enfim, até prova em contrário, merece respeito e admiração. Xxx As músicas de Ramiro são múltiplas, Românticas, satiricas e políticas estas, até há pouco, preservadas cuidadosamente a não ser dos amigos mais chegados. Inteligente, bem-informado, se mantém ligado ao que acontece no mundo embora raramente deixe aquela cidade. Por isso, não deve surpreender o fato de Ramiro ter inscrito na eliminatória de Cascavel, na promoção "Todos os Cantos" - que Heitor Valente e Jorge Natividade, coordenam para a Sece uma música que causou o maior reboliço. O júri e os apresentadores oficiais do Festival -Léa Kessenberg e Reinaldo Camargo chegaram a serem avisados de que, quando a música fosse interpretada, seria possível até haver tiroteios, atentados, etc. E uma saída de emergencia foi providenciada. Mas nada disto aconteceu: Ramiro defendeu seu samba-de-breque, teve aplausos e vaias. No final, nem foi classificada para a finalíssima. Cada jurado deu uma justificativa diversa: uns gostaram da letra, outros da música, muitos criticaram os breques na verdade quase monólogos. E por que tanta preocupação? Dois dias antes do Festival, O ESTADO, em sua coluna "Chumbo Grosso", já havia registrado que "Kid Ligeiro", título da música de Ramiro, estava irritando algumas pessoas importantes da cidade. A referência indireta ao assassinato do proprietário de um jornal da região, motivado por rixas políticas e envolvendo nomes de pessoas importantes da área, fez com que a música de Ramiro acabasse ganhando uma notoriedade que não teria. Afinal, seria apenas uma das muitas concorrentes no festival. Assim como a censura apenas promove uma música, as ameaças feita ao autor, também deram maior destaque à composição. Xxx Independente dos aspectos políticos-policiais a respeito, e mesmo a distância (já que não pudemos integrar o júri do Festival, devido a compromissos pessoais), achamos que a letra de "Kid Ligeiro"- que tanta polêmica e preocupação provocou deve ser publicada. Dentro de um prisma de pesquisa e história da música popular do Paraná, nada mais. Afinal, é do registro de episódios come este que se forma a memória musical de um País causa pela qual sempre nos batemos. Eis portanto a legra de "Kid Ligeiro", de Ramiro Carlos Rebouças. Xxx Fui contratado por um figurão da city Para fazer um servicinho de matança na cidade. Ele me disse que um cara intrometido Incomodava a nossa ordeira sociedade Fui ao escritório discutir meus honorários Mas recusei sua proposta inicial E lhe fiz crer que um trabalho de tamanha gravidade Só exigia recompensa especial (declamando): "E daí começamos a discutir/Proposta daqui, proposta dali/O assunto foi se alongando/Que eu resolvi por questões de ordem inflacionária/Fixar meus pró-labore em dólares". Ele queimou-se e foi dobrando a tal proposta Até chegar a uma quantia irrecusável E eu como todo pistoleiro que se preza Comecei a odiar aquele tipo miserável Vou apagá-lo sem clemência e de maneira deplorável. Pequei meu fusca com kits 1.600 E precavido já troquei logo de chapa Coloquei nele uma sujinha e com o nome De um lugarejo que não consta nem do mapa (declamando): "Aí minha nega velha cheia de preocupações gritou: "Cuidado Kid Ligeiro, não vá fazer bobagem/Escolha o lugar certo para o abate/Dê preferencias nas proximidades da Catedral/- Que é por onde todo mundo passa mas ninguém Vê nada". Achei o cara passeando na avenida Joquei o meu carro contra o seu/na contra-mão E ele pensando que era simples barberagem Não viu nem de passagem o trabuco na minha mão. (declamando): "Desferi-lhe o primeiro disparo e a bala em simbosa trajetória atravessou-lhe o fígado e o intestino em tres lugares, perfurou-lhe o pâncreas e foi alojar-se na pleura do pulmão esquerdo. Dei-lhe o segundo tiro na altura da garganta onde lhe fiz espantosa tancilectomia, para evitar que, no hospital, viesse a fazer declarações comprometedoras. Aplique-lhe o terceiro disparo na região cardiovascular. E constatei, com justificado orgulho profissional, que estava concluída a eutanásia". No outro dia o Lourival anunciava Que a dona justa já tinha pista concreta: Que o assassino fora visto fugindo pro Paraguai Atravessando o Paraná de bicicleta E que apesar da correnteza atravessou em linha reta E a dona justa em trabalhos exaustivos Encerra o caso com um fato estarrecedor E a conclusão que se chegou foi que o defunto Foi abatido por um disco voador E para fazer a deligencia espacial Faltam recursos que o povão nem imagina Mas a população que tenha paciencia Que ainda vão botar as mãos naquela nave assassina Não foram a Alfa-Centauro por falta de gasolina. Xxx Não é preciso ser nem um Sérgio Cabral ou Almirante, em termos de conhecimento musical, para se notar, lendo a letra de "Kid Ligeiro", que Ramiro Carlos Rebouças, embora musicalmente ligado à bossa nova, preferiu, desta vez, o estilo do grande (Antonio) Moreira da Silva (Rio de Janeiro, 1o .04.1902, ao gravar "Jogo proibido" (tancredo Silva/Ribeiro Cunha), improvisando intervalos dos versos com frases repletas, acabaria criando o gênero que o consagraria, e ao qual se deu o nome de "samba-de-breque". E o bom "Kid Moringueira", ainda forte e vigoroso aos 78 anos, dezenas de gravações, tem muitas músicas com a mesma estrutura do "Kid Ligeiro", de Ramiro. Só que, segundo alguns dos jurados de Cascavel, seus breques ficaram por demais longos. De qualquer forma, vale o registro.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Nenhum
Tablóide
7
06/08/1980

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