Maysa, ainda e sempre a emoção do amor
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 25 de janeiro de 1986
"Os olhos de Maysa
são dois não sei que
dois não como digo
dois oceanos
não pacíficos.
Maysa são dois
olhos e uma boca."
(Manuel Bandeira)
Faz 9 anos e parece que foi ontem. Aquela manhã de 1º de dezembro de 1976. Maysa foi ao estúdio da rádio Ouro Verde, onde gravava os depoimentos para o programa "Domingo Sem Futebol". Maysa estava tranqüila, serena, sem pressa. Em branca paz, como escreveria num breve registro, na coluna "Tablóide", no dia seguinte. Maysa estava mais uma vez em Curitiba. Sem compromissos profissionais, apenas descansando, na casa de sua grande amiga, Rose Rogoski - uma pessoa admirável, que conhece a arte de fazer amigos. Maysa diria, aliás, a respeito de Rose:
- "Sabe, eu dificilmente consigo me relacionar com mulheres. Fazer boas amigas. Mas com Rose é diferente. Realmente, ela me faz sentir bem".
Maysa, Dolores Duran, Elis, Silvinha Telles. Quatro mulheres que, mais do que grandes cantoras, foram assumidamente pessoas dramáticas. A morte de Elis, também em janeiro, vítima de drogas, há quatro anos passados. E Silvinha Telles - que tal como Maysa - morreu num acidente de automóvel, há 20 anos passados, quando se dirigia para Maricá, interior do Estado do Rio. Mortes dramáticas, que ceifaram da nossa música vozes únicas. Intérpretes que, passado o tempo, se revelam cada vez mais importantes.
Em 1968, Maysa dizia, numa entrevista, ter a impressão de que não morreria, a sensação de que seu corpo não fora feito para a morte.
No início da noite de 22 de janeiro de 1977, um sábado, aos 40 anos e tão só quanto como quase sempre viveu, ela encontrava a morte, a 100 quilômetros por hora, numa das pistas da ponte Rio-Niterói.
Ironia trágica: uma cantora que com sua voz e suas canções foi por 20 anos uma espécie de ponte entre solitários - aquela ponte que todos nós buscamos - morreria ao cruzar a maior ponte do Brasil.
Me deixe só
Errada e complicada
Não posso a tua paz
De nada me adianta a tua voz
Me cansa o teu eterno perdão
Embora eu queira tanto o teu peito
("Me deixe só", Maysa)
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A carreira de Maysa se confunde com um dos períodos mais ricos da música brasileira: aos 4 anos já compunha sua primeira canção - "Adeus". Mas seria com suas letras de fossa - mas numa poética de bom gosto - que ela explodiria, em 1957, fazendo um elepê, de 8 faixas, um dos primeiros produzidos por Roberto Corte-Real, pela RGE. Um disco cuja renda reverteu em benefício do Hospital do Câncer, pois Maysa era uma jovem dama da sociedade paulista - esposa do industrial André Matarazzo - e que só cantava em reuniões de amigos. E foi numa reunião de amigos, quando seu pai, Alcebíades Monjardim, a apresentou a um velho amigo, o Zé Carioca - que vivia nos Estados Unidos, mas que havia vindo a São Paulo, em 1956, para rever familiares, que houve um entusiasmo pela sua voz e composições.
A cantora tímida e recolhida ao ambiente familiar explodia naquele momento. E a música brasileira ganhava sua mais dramática intérprete.
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Foram anos de fogo, sem dúvida. De dor-de-cotovelo, de paixões imensas e assumidas. O casamento com André, naturalmente, acabou logo, mas o Matarazzo ficou por anos no nome artístico - apesar de Maysa jamais ter feito questão disto. Só em seus últimos discos conseguiu firmar-se apenas como Maysa - sem qualquer sobrenome. Seu nome já identificava a cantora dramática, única ao dizer versos que, quase como uma premonição, marcariam não só a sua vida e morte - mas também a de Silvinha Telles:
Todos acham que eu falo demais
E que ando bebendo demais
Que esta vida agitada
Não serve para nada
Andar por aí. Bar em bar.
("Demais", Antonio Carlos Jobim/ Aloysio de Oliveira)
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Difícil falar de Maysa sem emoção. Assim como é difícil ouvir seus discos - espalhados hoje em tantas remontagens, que tornam impossível fazer até uma discografia correta - sem a sensação de que ela - como Elis, como Dolores ou como Silvinha - será sempre a única, insubstituível.
Tecnicamente, Maysa nunca se preocupou em cursos de voz e dicção. Mas dizia as palavras, as poesias com uma tal força dramática, tamanha emoção, que todas as canções que registrou - as suas, os boleros e mesmo as canções em inglês (aliás, quando será que a CBS vai se lembrar de editar o lp que Maysa fez em Nova Iorque e que nunca saiu no Brasil?) tinham uma presença única.
As músicas de Maysa - como as de alguns outros privilegiados poetas deste Brasil - permanecerão sempre, enquanto houver uma pessoa sensível, uma noite de amor, uma dor-de-cotovelo, um momento de enlevo e felicidade. Sublime loucura do amor, que anima e nos faz caminhar, desafiar as regras e imposições, assumir os riscos de cada momento - que, já dizia o poeta Vinicius, deve ser vivido em toda sua intensidade, com todos os riscos e prazeres.
A Maysa mulher, compositora e intérprete - de 20 anos da melhor música brasileira, identificada em nome e imagem com tanta solidão da noite, em sua sinceridade foi também a esperança. Uma cantora maior, única e insubstituível que, como já disse Guimarães Rosa, não morreu. Ficou encantada.
Eu só digo
Eu só digo o que penso, só faço
o que gosto e aquilo que creio
E se alguém não quiser entender e
falar, pois que fale.
Eu não vou me importar com a maldade
de quem nada sabe
E se alguém interessa saber,
sou bem feliz assim:
Muito mais do que quem já falou
ou vai falar mal de mim!
(Maysa, "Resposta", 1970)
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