Narinha, Nana e Leila, com o máximo de emoção
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 16 de dezembro de 1989
Colocados no mesmo suplemento de final de ano, os álbuns de Nara Leão - que nos chega com a emoção maior, por se tratar de uma obra póstuma em sua edição; a gravação ao vivo de Nana Caymmi no Festival de Montreux, na Suíça, em julho último - acompanhada por Wagner Tiso nos teclados; e o revival da Bossa Nova na voz de Leila Pinheiro são momentos especialíssimos.
Narinha Leão conquistou os japoneses quando ali eteve há 5 anos, na primeira vez com a Camerata Carioca. Gravou um álbum intimista, somente com Menescal no violão, recordando sucessos da Bossa Nova que valeram a intimação de preparar dois novos álbuns, diretamente em CD, com um repertório que há muito fazia parte de seus planos: versões de clássicos americanos ajustados ao estilo bossa-novista - como aliás, Lúcio Alves tinha feito, em 1962, numa antológica produção de Aloysio de Oliveira ("Tio Samba", Philips, há muito aguardando reedição).
Quis o destino que após "Meus Anos Dourados" (1987), o estado de saúde de Narinha se agravasse e ela já estivesse gravemente doente quando fez o segundo álbum do projeto - "My foolish heart", que saiu em junho no Japão, em CD, duas semanas depois da morte da cantora. Conta Luis Antonio Giron, da "Folha de São Paulo", com base no que lhe informou Roberto Menescal, que no CD japonês havia uma faixa suplementar, o samba "Saudade de Você", parceria de Menescal e Nara, jingle da marca de cerveja que patrocinaria a excursão da dupla pelo Japão em outubro. (Esta música será lançada no Brasil em janeiro, numa coletânea que está sendo organizada por Menescal). Dentro da filosofia exposta por Menescal de que "quisemos mostrar que a Bossa Nova tem mesmo influência americana mas que também ela pode influenciar e traduzir a canção americana", este projeto de reelaborar bossa-novisticamente standards da canção americana resultou num álbum-ternura, que como o 29º da carreira de 27 anos de Nara Leão (1942-1989) fica como o grande testamento de uma obra imensa e irrepreensível.
Cada faixa é uma jóia terna, pois a própria Nara - filha de família de classe média superior, educada em bons colégios, poliglota - cuidou das personalíssimas versões, em muitos casos quase adaptações ao seu estilo, sua ternura de intérprete maior que sempre foi das canções (e coisas) do coração, começando com "Maravilha" (S Wonderful) (Gershwin), no qual todo bloco de cordas e a percussão brasileiríssima, no arranjo perfeito de Menescal, já antecipa a maravilha que se terá ao longo deste álbum ao longo de cuja audiência é difícil conter lágrima e emoção. Os irmãos Gershwin reaparecem em "Mas não pra mim" (But not for me) e, no encerramento do álbum com "Alguém que olhe por mim" (Someone to watch over me), em versão de Zé Rodrix e Miguel Paiva. "My foolish heart" é uma prova de como a versão pode ser valorizada, desde que haja competência para quem traduz a letra, escolhe o repertório e, especialmente, faz as releituras vocais. Nara Leão - com ajuda, naturalmente, de Menescal - fez deste seu derradeiro álbum um disco como ela sempre foi: consciente, terna, poética, romântica - e sobretudo admiravelmente humana, passando isto nas mais belas canções de Cole Porter ("Só Você": Night and day), Heyman/Victor Young ("Cartas de Amor" e "Sonhos": Love Letters/Dream); J. Lawrence/W. Gross ("E se depois/Tenderley"), Hart/Rodgers ("Onde e quando/Where or when"); Gre/Brown/Homer ("A saudade me bateu/Sentimental Journey"); Harbach/Kern ("Fumaça nos olhos/Smoke gets in your eyes") e Gordon/Warren ("Sem querer/You'll never know").
Anualmente, o álbum de Nara Leão sempre teve lugar cativo em nossa lista dos melhores. Este ano não será diferente: "My foolish heart" é presença obrigatória. Pana que seja pela última vez que poderemos fazer esta homenagem. 1990 não terá mais Nara.
A tristeza de saber que Nara não está mais entre nós é grande, imensa. Pessoas como ela - como foram Silvinha Telles, Dolores Duran, Maysa, Elis Regina (que trágico destino de nossas melhores cantoras morrerem tão jovens) são insubstituíveis. Resta, entretanto, a compensação de que vez em quando aparecem talentos capazes de aproximarem-se destas grandes vozes que se foram.
É o caso da suave Leila Pinheiro, paraense, revelada com "Verde" (Gudin/Costa Manso), e que a cada novo disco vem confirmando ser uma das gratas presenças vocais de sensibilidade, vigor e força neste final de década.
"Benção Bossa Nova", gravado também com vistas ao mercado japonês, entre os dias 22 de agosto a 1º de setembro último, é um felicíssimo encontro da experiência de Menescal - no violão, arranjos e produção - mais Fernando Merlino (teclados), Jamil Joanes (baixo), Rubinho (bateria) e Barney (percussão), para o melhor revival bossa-novista entre tantos que aconteceram neste ano em que se comemorou, oficialmente, os 30 anos da eclosão do movimento.
São trinta momentos da melhor MPB - desde os primeiros clássicos ("Batida diferente", "Moça-flor", "Tristeza de nós dois", "Meditação", "Corcovado", "Amor em paz", "Se é tarde me perdoa", "Saudade faz um samba", "Lobo bobo", "O barquinho", "Você", "Nós e o mar", etc.) até alguns exemplos de influências da Bossa Nova sobre uma geração formada à sua luz - como Toquinho autor de "Que maravilha" (que Jorge Ben internacionalizou), abrindo o lado B. "Bossa Nova" - reverência ao "Samba da bênção", que encerra o álbum - é outro momento iluminado sonoramente neste final de ano.
Nana Caymmi canta pelo útero, sentenciou, um dia, Hermínio Bello de Carvalho - amigo e admirador maior desta incrível cantora. Realmente, mais do que nada, este elogio meio grosseiro aparentemente define toda a força, vigor e emoção que Nana coloca em cada música que interpreta. Se Elizeth Cardoso - outra paixão de Hermínio (e nossa) é a dama maior da MPB, que tem sua forma perfeita de traduzir as palavras musicais, Nana é uma intérprete, que coloca corpo & alma, vísceras e coração em cada momento. Se em estúdio já é difícil conter esta potranca puro-sangue de emoção vocal, imagine-se ao vivo, cantando para uma platéia internacional como foi a que enfrentou em julho, em Montreux. Após o "Medo de amar" (Vinícius de Moraes), com o acompanhamento perfeito de Tiso (piano, arranjos, direção musical), Jorge Pardo (sax, flauta), Carlos Carli (bateria), Rubens Dantas (percussão), Bida Nascimento (contrabaixo) e Santiago Reys (guitarra elétrica e acústica) foi uma torrente de emoção, ao longo de um repertório que em português alcançou corações e mentes, de todos que souberam ouví-la neste recital à brasileira - no qual, para mostrar sua espontaneidade, não faltaram sequer alguns afetuosos palavrões - marca registrada de Nana.
"Se todos fossem iguais a você" (Jobim/Vinícius), "Se queres saber" (Peterpan), "Beijo partido" (Toninho Horta), "Chorava" (Wagner Tiso), "Nuvem Cigana" (Lô Borges/Ronaldo Bastos) e as familiares contribuições - "O Cantador" (Dori Caymmi/Nelson Motta), "Só louco", "Milagre" e "Rosa morena" (Dorival Caymmi), fazem deste álbum ao vivo um momento da maior emoção.
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