Rasga coração no bebop do pássaro com todas emoções
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 28 de fevereiro de 1989
"Não existe segundos atos nas vidas americanas."
(F. Scott Fitzgerald, 1896-1940)
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Ao buscar numa frase legada pelo autor da era do jazz, escrita 30 anos antes da morte de Charlie Parker, o cineasta Clint Eastwood não pretendeu apenas acrescentar um dado poético-intelectual em seu apaixonado tributo àquele que foi o maior saxofonista e criador do jazz em todos os tempos. Procurou, como em todo filme, dar uma abertura maior, pois acima das cinebiografias que, bissextamente, o cinema americano tem se voltado a prestar (geralmente com atraso) aos grandes nomes da música, Eastwood fez mais do que um filme, um verdadeiro manifesto sobre a arte americana injustiçada em sua época - quando incompreendida.
Assim como nas sessões do Bristol (onde o filme estará até amanhã, em exibições às 14, 17 e 10,15 horas) espectadores deixam a sala por não conseguirem entender todo o significado de "Bird"; Parker, em sua vida, teve pouquíssimos espaços (afora o Royal Roust e, já no fim de sua vida, o Birdland, na rua 52 em Nova Iorque), nos quais o som que ele desenvolveu - o bebop - tivesse a acolhida e o respeito que, só quase duas décadas depois, obteve uma extrapolação internacional. em seu 12o. filme como diretor - carreira na qual se firma com segurança e talento sempre crescentes (apesar de algumas eventuais escorregadelas), Clint Eastwood, longe da imagem do herói de bang-bang spaghetti ou de policial desalmado (Harry, o Sujo), fez a melhor obra de sua vida justamente porque, como declarou, tratou da personalidade artística que mais o marcou, apaixonado por jazz como sempre foi.
Há três anos, um francês igualmente apaixonado por jazz, Bertrand Tavernier, fez de "Round Midnight" (Em Torno da Meia Noite), um evento por consagrar em imagens a amizade de Francis Paudras pelo pianista Bud Powell (1924-1966), durante o seu exílio (1959-62) parisiense. O resultado foi um filme-resgate em termos de jazz no cinema, valendo, inclusive, ao músico-ator Dexter Gordon sua merecida indicação ao Oscar de melhor ator no ano retrasado.
Embora a referência a "Round Midnight" seja natural, o fato é que independente do valor do filme de Tavernier, "Bird" é uma outra visão do universo do jazz. Como "Round Midnight", a fotografia de Jack N. Green é escura, propositalmente embaraçada - o que faz com que estes filmes percam muito ao passarem para a tela pequena (o que não impedirá seus admiradores de os possuírem em vídeo: aliás, "Round Midnight" já editado no Brasil, selado, pela Warner). Em "Bird", conta-se nos dedos da mão esquerda as seqüências up, com luminosidade externa - flagrando momentos felizes de Parker: o casamento judeu no qual acompanha o pistonista Red Rodney (Robert Chudnick, Philadelphia, 27/9/1927) - o músico branco que teria na vida de Parker uma presença tão grande quanto foi a do desenhista Francis Paudras na de Bud Powell; a excursão ao deep south, no qual, por brincadeira, Parker apresenta Rodney como "Albino Red", cantor de blues; a emocionante seqüência em Paris - onde Parker esteve em maio de 1949 - em sua primeira viagem internacional (só faria uma outra à Escandinávia, em 1950). E no final de sua vida, na propriedade rural, onde tenta reconstruir a sua vida.
No mais, são interiores de bares, clubes, hospitais e mesmo clautrofóbicos estúdios - inclusive com uma alusão à famosa crise que teve após gravar dois números que o deprimiram, em 29/7/1946, na Califórnia - onde o bebop não era compreendido e que o levou a quebrar a sala de gravação.
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As drogas, a perseguição policial, as quadrilhas de traficantes no meio musical, o medo de perder a sua inscrição no Sindicato dos Músicos, prisões e julgamentos a que foi submetido em sua vida, paralelamente a uma vida pessoal das mais complicadas - com inúmeras amantes e envolvimentos diversos, foram admiravelmente colocados no roteiro de Joel Oliansky.
A relação com Chan Robinson, filha de um empresário da Broadway, apaixonado por jazz, que conheceu quando ela estava grávida de sua primeira filha, Kim (hoje cantora de jazz, com vários LP's gravados), filha de um músico, é o ponto romântico do filme. Uma paixão capaz de levar Parker a empenhar seu saxofone para alugar um cavalo branco e buscar Chan em sua casa, como um cavaleiro medieval - numa das mais belas cenas. Duas outras seqüências extraordinárias:
em Los Angeles, envolvido com uma mulher rica (não nominada), mostra todo o seu respeito a Igor Stravinski (então, 1946, em "exílio" americano): passa por sua casa, bate a campainha e, do automóvel, olha com respeito o autor de "Pássaro de Fogo" que estava ouvindo na seqüência anterior. Já em Nova Iorque, quase no final da vida, chocado por ver os antigos jazz clubes da rua 52 transformados em casas de sexo, Parker vai ao teatro Paramount e ali irrita-se ao encontrar um ex-músico de jazz, com o nome (ficcionado) de Buster Franklin (Keith David) tocando rock. A simples expressão de Parker mostra todo seu horror pela música que, coincidentemente, naquele ano (1954) começava a explodir a partir de "Rock Around the Clock".
Alguns personagens são ficcionados - embora inspirados em tipos reais - como os músicos Buster e Morello (Richard Jeni), para que Clint evitasse problemas legais. Mas basicamente toda a estrutura de "Bird" foi a mais honesta possível - com a fiel reconstituição de um trajetória, em tempos fragmentados, nos quais Parker (quando jovem interpretado por Damon Whitaker, depois por Forrest Whitaker - Palma de Ouro de melhor ator em Cannes-88), sua esposa Chan (Diane Venora), excelente; Red Rodney, o músico branco (Keith David) e outros personagens adquirem presença viva, emocionante e atual - fazendo deste mais do que um filme-biográfico, um verdadeiro manifesto a artistas que, com uma sensibilidade muito além do convencional para serem aceitos em sua época, foram marginalizados, sofridos e desprezados - só agora, três décadas depois, devidamente recolocados no espaço que mereceriam ter tido em vida.
LEGENDA FOTO - O diretor Clint Eastwood e o músico-compositor-arranjador Lennie Niehaus, supervisor da trilha de "Bird", a cinebiografia de Charlie Parker em exibição no Cine Bristol.
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