Roberto, o cinema, a literatura e a morte
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 06 de maio de 1987
No coffe shop do Hotel Serra Azul, bastante traqüilo já na madrugada de terça-feira, 28, segundo dia do XV Festival de Gramado, reencontro Roberto Santos e sua esposa. Haviam chegado a tarde de São Paulo mas, embora cansados, fizeram questão de assistir aos filmes em competição - o surpreendente e talentoso "Anjos da Noite" e o cansativo "A Guerra do Brasil". Roberto Santos está feliz e esperançoso: seu "Quincas Borba" programado para a sexta-feira, 1º , último dos filmes em competição, fará dobradinha com outra produção paulista, "Besame Mucho", de seu amigo Francisco Ramalho. Ambas produções de origem literária: "Quincas Borba" é uma adaptação modernizada do romance que Machado de Assis (1839-1908), publicou há 96 anos. O filme de Ramalho, a transposição à tela da elogiada peça de Mario Prata.
Cineasta que sempre buscou temas literários, Roberto fala das razões que o fizeram substituir o projeto original de filmar "Miguelim" pelo romance de Machado de Assis:
- "Eu tentei de todas as formas acertar com a Wilma (Guimarães Rosa), a compra dos direitos. Entretanto, as negociações foram demoradas: ela exigiu US$ 60 mil dólares e quando levantei os recursos, veio com outras exigências: o filme não poderia ser comercializado em televisão e vídeo por vários anos. O que, atualmente, é impossível de evitar".
A esposa de Roberto, uma senhora atenciosa e simpática, acrescenta outros detalhes:
- "O pior era a demora das respostas! Perdemos meses nestas negociações". Roberto, que nos havia falado, pela primeira vez, de seu projeto de filmar "Miguelim", há um ano, quando esteve em Curitiba, participando de uma retrospectiva de seus filmes, lamenta não ter conseguido retornar ao universo roseano:
- "Realmente, o mundo de Guimarães sempre me fascinou. E "Miguelim" era um projeto especial. Mas, em termos práticos, o que poderia fazer? Assim, lembrei de "Quincas Borba" e parti para a sua adaptação, modernização e ação".
Realizador daquela que é considerada, com razão, a melhor adaptação da obra de Guimarães Rosa ao cinema - "A Hora e a Vez de Augusto Matraga", o melhor filme brasileiro de 1966, Roberto Santos fala com intimidade da obra do autor de "Grandes Sertões: Veredas".
- "Seus personagens são fortes, brasileiríssimos. Realmente, teria gostado de fazer uma segunda fita com um de seus textos". Entretanto, Machado de Assis, passados 79 anos da sua morte, também o fascina:
- "Acredeito na atualidade dos temas tratados por Machado. E ao reler "Quincas Borba", na relação entre um homem rico e ingênuo, Rubião, apaixonado por uma mulher cruel, Sofia - manipulada pelo ambicioso marido, Palha, senti a atualidade, as coisas que não mudaram em sua essência".
Justamente por não ter havido uma mudança na essência, Roberto Santos optou pela atualização da história: não só pela questão prática, de evitar uma filme de época - caríssimo e difícil - mas também "para dar uma maior empatia com o público jovem". Fala com entusiasmo das possibilidades de lançamento de "Quincas Borba".
- "Não sei, ainda, quando será. Mas vou procurar participar o máximo, motivando os estudantes em torno deste autor, tão importante de nossa literatura e hoje esquecido".
Lembro a Roberto de outras adaptações de Machado de Assis no textos de cinema: há dois anos, o irreverente "Braz Cubas", de Julio Bressane (que competiu no FestRio-85) e esteve em Gramado, no ano passado, "Um Homem Célebre", de Miguel Farias ( com uma antológica trilha sonora de Francis Hime e marcante atuação de Walmor Chagas); "Capitu", que Paulo Cesar Sarraceni realizou há 19 anos, com Isabella e Othon Bastos e "Azylo Muito Louco" que Nelson Pereira dos Santos realizou em 1971, do conto "O Alienista". Sem falar num curta-metragem, inspirado em "A Missa do Galo", mostrado num dos primeiros festivais de Gramado - e do qual ninguém reteve o nome do diretor. "Mas que foi excelente, o melhor tratamento dado a Machado no cinema" comenta Carlos Eduardo Jorge, ex-crítico da Folha de Londrina, professor e diretor da Casa da Cultura em Londrina.
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Roberto Santos analisa as dificuldades de fazer cinema no Brasil. Fala dos riscos comerciais, do altíssimo custo de qualquer produção e da imponderabilidade no mercado.- "Por isto, tenho procurado solidificar meus filmes, em esquemas possíveis de serem cobertos com tranqüilidade, para não sentir o desespero de um fracasso comercial, que comprometa o patrimônio." "Quincas Borba", teve um custo médio - ao redor de Cz$ 4 milhões cobertos em mais de 50% com seus recursos.
- "Foi uma produção econômica, pouco elenco e filmado apenas com uma locação fora de São Paulo, - na cidade de Tiradentes, em Minas Gerais.
A esposa de Roberto intervém:
- "A economia foi total. O único pagamento que Roberto recebeu, durante a realização foi uma retirada mínima, para nossas despesas indispensáveis."
Cyro Del Nero, um dos mais famosos cenógrafos brasileiros, uniu-se à produção, como diretor de arte. A fotografia foi feita por Roberto Santos Filho. Com natural orgulho, fala:
- "Foi uma alegria emocionante trabalhar com meu filho na fotografia, sentindo seus pontos de vista, seu entusiasmo pelo cinema - que acabou herdando de mim."
Um outro filho de Roberto vive nos Estados Unidos. Preferiu a solidez de uma carreira de executivo, do que os riscos e incertezas do cinema.
- "Os riscos sempre existem. É impossível saber como o público [reagirá e], naturalmente, o exemplo de "Eu Sei Que Vou Te Amar" não pode faltar. Exibido no encerramento do Festival de Gramado do ano passado, com apenas dois personagens - tinha tudo para ser o maior miúra do cinema brasileiro (ou seja, o filme de arte que não atrai público) e ocorreu o contrário. Claro que a premiação em Cannes a Fernanda Torres ajudou - mas houve algo de especial, fascinante, que fez o filme de Jabor atrair tamanho público. Roberto Santos fala com carinho, simpatia e educação de seus colegas. Jamais faz qualquer crítica. ao contrário, procura descobrir em cada filme citado, o lado positivo, o talento de algum integrante da equipe. Para ele, cinema é um esforço de muitos, uma procura da síntese, do poder das imagens. Mas, lembrando o que Spielberg disse na última festa do Oscar - a importância do texto voltar a sobrepor o visual - Roberto se estende ao falar dos roteiros:
- "Eu sempre tive uma preocupação de trabalhar o máximo nos roteiros de meus filmes e por isto nasceu uma aproximação natural com a literatura."
Em 1968, Roberto Santos deu uma visão social e crítica a uma das mais inspiradas crônicas de Fernando Sabino: "O Homem Nu". O personagem interpretado por Paulo José, nu pelas ruas do Rio de Janeiro, coloca em discussão a hipocrisia de toda uma sociedade urbana. Um filme fascinante, que resiste ao tempo. Em 1971, uma produção originalmente destinada a ter direção de Walter Hugo Khouri, foi realizada por Roberto: "Um Anjo Mau", do romance do baiano Adonias Filho e com a bela Adriana Prieto (tragicamente morta num acidente de automóvel, pouco tempo depois), em seu melhor papel. Dos filmes de Roberto, "Um Anjo Mau", foi o primeiro a ser lançado em videocassete. Sobre esta forma de reprodução, diz:
- "Estou agora estudando a comercialização dos meus outros filmes. Mas com relação a "Quincas Borba" vou aguardar pelo menos seis meses. Não estou convencido de que seja vantajoso o lançamento simultâneo. Sou dos que acreditam ainda no cinema, na magia da tela ampla. Os grandes planos, o close valorizado na tela espaçosa - que o vídeo não transmite."
Autodidata em literatura, politicamente sempre um homem preocupado com o semelhante, Roberto Santos estreou no longa-metragem há 29 anos, com um filme que se enquadrou tanto como uma retomada de um neo-realismo, como foi admitido como precursor do "Cinema Novo": "O Grande Momento", com os jovens Gianfrancesco Guarnieri, Miriam Persia, Paulo Goulart, Vera Gertel e Lima Duarte - todos em suas primeiras experiências no cinema. A fotografia de Hélio Silva captava o sabor do subúrbio paulista, da vida familiar. Uma comparação é inevitável com o contundente "Anjos do Arrabalde", no qual Carlos Reichenbach, mostra, com crueza, a violência do subúrbio da São Paulo desumana dos anos 80.
- "O Grande Momento" tem o lirismo e a beleza simples de uma época que não existe mais. Infelizmente, tudo mudou para pior... Quando era professor de cinema no Curso de Comunicação da USP, Roberto Santos trabalhou com seus alunos num filme coletivo, em episódios, realizado entre 1970/73: "Vozes do Medo". Propositalmente simbólico - afinal a repressão política era terrível naquele época - o filme supervisionado por Roberto teve pouquíssimas projeções (em Curitiba, mostrado uma única vez na Cinemateca, quando de sua retrospectiva).
Na época, outro projeto de origem literária o atraía: a adaptação do conto "A Caçada", de Lygia Fagundes Telles. A idéia era contar uma mesma história de formas diferentes - mas o projeto não se concretizou. Realizou, isto sim, "As Três Mortes de Solano", também pouco visto.
Observador de costumes, um olhar sempre no social, Roberto Santos diz:
- "Acho que as coisas não são tão fáceis como parecem. Assim, o tabu de virgindade e a repressão sexual me motivaram a fazer "Nasce Uma Mulher", que enfoca a crise familiar provocada pelo fato de a mãe descobrir que sua filha não é mais virgem."
Antes, porém, Roberto havia partido para uma outra experiência de inspiração literária: de uma crônica fez "Os Amantes da Chuva", com Beth Mendes (hoje Secretária da Cultura em São Paulo) e Helber Rangel, um de seus atores favoritos - o "Rubião" em "Quincas Borba".
Um cineasta voltado ao humano, ao literário, ao comportamental. Sensível, simples e a procura de uma linguagem capaz de chegar ao público. Buscando sempre novos talentos, pra "Quincas Borba" escolheu a modelo fotográfica Brigitte Broder para o papel de Sofia. Explica:
- "Queria um rosto novo, diferente - entre o suave e o enigmático. Ao conhecer Brigitte, ela me pareceu a intérprete ideal." Catarinense de Joinville, adolescência em Curitiba e depois tendo morado em Porto Alegre, Brigitte é hoje uma disputada cover girl. Seus pais ainda moram em Curitiba.
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Roberto Santos morreu domingo, pela manhã. Retornava de Gramado, onde seu filme "Quincas Borba" foi recebido com frieza (e mesmo críticas cruéis). Frustrado, mostrava já no sábado, após os debates realizados no anfiteatro Lupiscínio Rodrigues do Centro de Convenções Serrano, uma grande depressão. Ao seu lado, em todos os momentos, a atriz Marlene França - principal intérprete de "Nasce Uma Mulher" e numa pequena ponta em "Quincas Borba".
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Do último encontro com Roberto Santos, no hall do Centro de Convenções, após o debate, ficou uma frase:
- "Festival é sempre encontro de opiniões diferentes. E cada um vê o filme à sua maneira..."
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