Toda religião não tem autocrítica
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 01 de abril de 1979
De todos os tópicos de que falo - políticos, sociais, morais sexuais, o que suscita mais indignação é sempre, e ainda, o religioso. Todo o grupo religioso, grande ou pequeno, de qualquer coloração, e sempre taccioso, intransigente, agressivo, sem auto-crítica, totalitário. Falo de cadeira - tenho violenta e sofrida experiência pessoal do assunto. Nenhum grupo religioso dos que conheço admite que alguém possa não acreditar no seu credo e ironiza-ló, mesmo inocentemente, critíca-ló, mesmo em suas maiores besteiras. Quando a crítica é feita pela imprensa, às redações chegam sempre cartas furiosas, falando em desrespeitos, sacrilégio, e paradoxo que os missivistas religiosos parecem nunca perceber, cheias de ódio, pedindo a cabeça do herege. Eu, porém, que não me emendo, continuo dizendo o que penso e correndo risco. Pois minha fé e que, a medida que as nações se desenvolvem, os deuses vão se mudando para nações mais pobres.
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Esse longo parágrafo, e o transcrevi da revista VEJA de 14 de fevereiro último. Ele deveria servir de objeto de reflexão por todas as religiões, pela importância que tem e pelo muito de verdade que contém. De modo particular, entretanto, ele é um filé minhon para nós, protestantes, porque o que mais nos está faltando, neste momento da nossa história no Brasil, é uma boa auto-crítica.
"A Igreja Protestante julga-se dona da verdade", disse-me, em recente entrevista, o professor Francisco Penha Alves, um dos mais ilustres que já lecionaram no Seminário Teológico de Campinas, antes um dos melhores da América Latina. "A Igreja Reformada está se revelando reacionária, ultraconcervadora, intolerante, exclusivista e alienada da pura espiritualidade, preocupada em supor-se dona da verdade", falou ele textualmente. Um seu colega, reverendo Antônio Gouvea Mendonça, em artigo que publiquei na "Tribuna" de Vitória nos dias 9 e 10 de fevereiro passado, intitulado "Uma Igreja que tem pavor da Teologia", ele, que é professor de Filosofia e ex-reitor da Faculdade Presbiteriana Independente de Teologia (cargo a que fins de 1978) falou do "as sacrifício da elite intelectual da igreja", há uns dez anos atrás, elite essa "que não mais foi recuperada. O que sobrou foi o ressentimento e, o que é pior, um sentimento mórbito contra intelectuais e teologia".
REIS FILÓSOFOS
A validade da crítica de Miltor Fernandes está justamente localizada no fato de que o protestantismo brasileiro não abre espaço para seus intelectuais. Não os haja, pois só eu conheço uma porção deles. O que acontece é que todo homem que pensa incomoda e, como os cargos de lideranças são ocupados por bons políticos, mas via de regra, medíocres em conhecimentos teológicos e sem profundidade intelectual, os detentores do poder eclesiástico apressam-se em julgá-los hereges, para, assim, não sofrerem o incômodo da sua constante análise dos fatos. Morrem de medo de perder o poder, porque, de resto, estar no poder deve ser uma delícia.
Como já desde a "República" e Plantão se verificou que os reis não são filósofos nem os filósofos reis, os "Filósofos", isto é, os que exercem o "livre pensar, que é só pensar" segundo o grande filósofo Millôr Fernandes, são impedidos de exercer qualquer influência dentro dos seus grupos religiosos, razão pela qual estou pessimista quanto a ver mudada a triste situação retratada pelo Millôr.
DESRESPEITANDO A RELIGIÃO
Quero, entretanto, depois de reconhecer o valor inestimável da cuca privilegiada do Millôr, que há tantos anos enriquece o pensamento brasileiro com seu humor e excelente filosofia, por algumas coisas para ela pensar, esperando que ele não me goze pela atitude, como teria feito Socrates na arredota a ele atribuída. Um qualquer de Atenas, encontrando-se com o grande filósofo, lhe teria dito; "Sócrates, precisamos trocar umas odéias". E ele: "Pois não, o que você tem para dar em troca?"
Infelizmente não arquivei nem tenho de memória tudo que venho lendo da lavra do Millôr todo estes anos, mas, descupe-me, já o viironizando pensamento religioso nada inocentemente. E me grilei com a coisa, não por ter uma condenável mente fechada. (Orgulhosamente me considero um "aberto para novas idéias). Achei algumas colocações dele desrespeitosas porque ele, que é um homem de sabedoria, não pode se dar ao luxo de entender tão pouco do sentimento religioso que use sacrilégios a torto e a direita sem se dar conta de qual risco é o sentido espiritual da revelação de Deus através da qual o religioso foi levado à prática do que ele ironiza. Fosse ele um tapado, um beócio, nem perderia tempo de levanta a questão. Mas acho Millôr um surdo falando das valsa de Strauss nesse campo. No único aliás. Porque adoro ler tudo o mais que ele produz.
Declaro ainda que ele está dizendo uma asneira imensa quando afirma que "à medida que as nações se desenvolvem, os deuses vão se mudando pra nações mais pobres". Ouçam o que disse, na apresentação da revista RELIGIÃO E SOCIEDADE, a sua comoção editorial, que não tem ninguém se autocríticas, intolerante, reacionário ou totalitário: "As previsões acerca do fim da religião parecem, hoje, cada vez mais problemáticas. Se é verdade que as formas institucionais clássicas das religiões têm perdido sua clientela em certas situações, é verdade que se observa o surgimento de uma grande variedade de novas formas religiosas ou de alternativas seculares marcadas pelo signo religioso".
Coloco estas coisas correndo o risco de o Millôr me considerar pretensioso como o sujeito da anedota do Sócrates, mas aceito esse perigo porque "eu sei em quem tenho crido e estou bem certo de que ele é poderoso", como disse certa vez o apóstolo São Paulo. Nós, religiosos, temas uma experiência pessoal que eu gostaria que o Millôr um dia sentisse para saber como é que é. Através dela, nós sabemos de coisas "que se discernem espiritualmente" e quem não tem o dom da fé - e não tem culpa de não tê-lo - está por fora, sabe? Por fora. Pergunto ao Millôr: será que não estará, em alguns casos, sendo você o pretensioso, de achar que o seu modo de ver o mundo - sem Deus - é o único cerdo, dando-lhe como pressuposto que nós, os religiosos, somos um bando de idiotas que não sacamos ainda a boa que é a sua?
Reconheço como boa e válida sua colocação de que idiotas em nosso meio há-os em quantidade surpreendente. Mas nem todos o somos, pôxa. Há muito Teilhatrd de Chardin, muito Karl Barth, muito Paul Tillich, muito Jurgen Moltmann por aí. E peço-lhe que nos dê uma colher de chá na medida em que nos irmanamos com sua crítica aos terríveis totalitários e caçadores de herejes que tomam conta do poder das nossas comunidades. Não nos ponha no mesmo saco com eles, embora pertençamos ao mesmo grupo religioso. Aliás fazer o que? Vou deixar de ser presbiteriano só porque há presbiterianos burros, facciosos, intransigentes etc.?
ATEUS NO CÉU?
AH, e tem outra: quando chegarmos no céu (e Deus é tão bom que tenho certeza de que haverá lugar para os ateus também lá; não disse São Paulo que "quem pecou sem lei, será julgado" e não ensinou São João que Cristo e "a luz verdadeira que ilumina todo homem que vem a este mundo"? Em todo caso, vamos deixar o julgamento para o único Juiz, que é o Senhor) vamos nos surpreender de encontra lá um montão de totalitários, agressivos e sem auto-crítica na nossa companhia, porque os padrões de Deus não são iguais aos nossos.
Não me piche de falta de amor, meu querido Millôr, porque pelo contrário, gosto de você e muito. Mas tenho ainda uma última crítica a lhe fazer.
OS SÁBIOS IGNORANTES
Há uns dois anos estive na Getúlio Vargas, em São Paulo, onde pessoal da Faculdade pediu a presença de um pastor, um padre e um rabino judeu para ajudar um seminário sobre "O Suicídio" de Emile Durkheim. Quando um rapaz começou a dar uma de Millôr Fernandes pra cima de nós e a ironizar a "teologia religiosa" que defendiamos, o padre católico se grilou e disse que ele não dando conta de que defendia uma "teoria cientifica", que, na melhor das hipóteses, teria tanto peso quanto a teoria religiosa, eis que as "teorias cientificas" mudam demais com o passar do tempo. A crítica, pois é a de que os descrentes não admitem como possível uma SABEDORIA ESPIRITUAL, que, por não ser científica, não se busca nos livros, mas na comunhão com Deus. E nisso dão uma de ignorantes. "podem creer".
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