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Aramis

Vidas e verdades segundo as questões de Pirandello

Pertencente à primeira fase da produção cultural de Luigi Pirandello (Agrigento, 1867-Roma, 1936), "Il fu Mattia Pascal", publicada em 1904, já manifestava suas dúvidas quanto à identificabilidade da personalidade humana, tema que reapareceria em seus contos e se solidificaria em sua representativa obra teatral. Considerado um dos mais importantes escritores italianos, tendo estudado filosofia na Alemanha e vivido durante anos enlouquecido e obtendo pouca ressonânica dos seus textos (embora, dois anos antes de morrer, tenha sido reconhecido com o Nobel de Literatura), Pirandello é um autor insuficientemente conhecido no Brasil - inclusive devido a falta de traduções de suas obras. Também suas peças - profundas, indagativas, questionando o homem e o tempo -, há muito não são aqui representadas. Se houvesse maior interesse pela obra de Pirandello por certo que um filme como "As Duas Vidas de Mattia Pascal" (Cine Ritz, hoje último dia em exibição) atingiria maior impacto, mesmo com a concorrência nesta temporada de filmes oscarizáveis. Apesar de tudo, encarado mais como comédia, "As Duas Vidas de Mattia Pascal" conseguiu superar a barreira de uma semana de projeção - período-limite que faz tantos bons filmes serem liquidados em suas carreiras nos cinemas supostamente culturais da Fucucu - e alcançou uma segunda semana. Coincidentemente, "Le Due Vite Di Mattia Pascal" foi realizado em 1986, mesmo ano em que os irmãos Paolo e Vitório Taviani voltavam-se também ao universo do mesmo autor em "Kaos". Uma produção bem mais ambiciosa, no aproveitamento de quatro contos que resultou em 14 volumes, publicados entre 1922/36), "Kaos" é um cult-movie que necessita constantes previsões para ser apreendido em toda sua dimensão. Nas estórias "L'Altro Figlio", "Mal Di Lusa", "La Ciara" e "Requien", mais o "Colloquio con la Madre", espécie de epílogo em que Omero Atonutti interpreta o próprio Pirandello, numa conversa com sua mãe (Regina Bianchi) os irmãos Taviani dissecaram muito da alma e emoção tipicamente italiana. "Kaos" é daqueles filmes que envolvem o espectador mas dele exigem uma grande participação - inclusive pelo clima opressivo das regiões áridas da Sicília, em que as estórias se passam e a própria longa-metragem (o filme chegou a ser dividido em duas partes, exibidos em sessões diferentes). Seria oportuno se o Chico Alves reprogramasse "Kaos", não para a maldita sessão da meia-noite do Groff, mas para uma semana, normalmente, no mesmo cine Ritz (onde, aliás, o filme foi lançado). Comparativamente a "Kaos", "As Duas Vidas de Mattia Pascal" não tem a dimensão maior da obra de Pirandello, que em seus contos e, especialmente peças (das quais as mais conhecidas no Brasil são "Assim é se lhe Parece", 1918 e "Seis Personagens em Busca de um Autor", (22) sempre refletiu sobre a impossibilidade de se conhecer a verdadeira identidade da pessoa e a impossibilidade de saber a verdade sobre ela. Entende-se a dificuldade existente em relação a "Le Due Vita Di Mattia Pascal": co-produção com RAI I, foi concebida com uma minissérie de televisão, mas remontada para um filme de metragem normal e conduzida com a presença de nomes famosos - ao contrário de "Kaos", nos quais os irmãos Taviani, propositalmente, utilizaram artistas desconhecidos, sem preocupações de estrelismos (aliás, uma das marcas destes realizadores italianos). Apesar do clima bem mais digestivo dado a "Mattia Pascal", isto não retira a força do personagem central, uma segura (como sempre) interpretação de Marcello Mastroiani: no homem de meia-idade, vivendo de um passado de tranqüilidade financeira numa típica aldeia da região da Riviera Dei Fiore, o seu mundo sofre transformações: a falência provocada pelo contador (mafioso) desonesto, um casamento infeliz e a busca de uma segunda vida - com nova identidade e em outro ambiente - desta vez o urbano. Por certo, na adaptação que Monicelli fez da novela original (trabalhando com os competentes Suso Cecchi D'Amico, Ennio De Concicni e Amanzio Todini) houve necessidade de sacrificar muitos episódios e personagens (ao menos na versão para a tela ampla), a exemplo do que, em termos nacionais, aconteceu com "Jubiabá" de Jorge Amado, filmado por Nelson Pereira dos Santos (também concebido para minissérie de televisão e fragmentado em sua montagem para a camisa-de-força da metragem normal do cinema). "As Duas Vidas de Mattia Pascal" é rico em suas intenções - tanto do lado reflexivo dos personagens, como da própria estória, com toques de um humor tipicamente meridional. A fotografia de Camilo Bazzoni capta, com felicidade, a beleza de uma das mais belas regiões da Itália, a chamada Riviera Dei Fiore - na qual se localiza a cidade de Vitimiglia (citada rapidamente na história) e aproxima a aldeia de Dolce Acqua, onde nasceu o pintor Franco Giglio, que por 15 anos residiu em Curitiba. A trilha sonora de Nicola Piovani também é magnífica: há toques que vão de um Astor Piazzola a Nino Rotta (1917-1979) na criação de uma banda sonora que sem interferir exageradamente marca a ação e os personagens. O diretor Mário Monicelli, 73 anos, competente sempre ao longo de uma imensa filmografia que vai desde a fase de comédias (iniciadas em parceria com Steno, em 1959, "Ao Diabo a Fama"), ao social ("Os Companheiros", 63) e ao emotivo ("Romanzo Populare", 74), tem sempre o timing exato na criação de situações e emoções.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
06/04/1988

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