Villa-Lobos sem casaca
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 10 de março de 1987
Quinta-feira, dia 5, foi dado início ao grande Festival Villa-Lobos. Este é o ano Villa-Lobos, em que o mundo todo comemora o centenário de nascimento do mais importante compositor brasileiro. A própria Unesco oficializou 1987 como o Ano Villa-Lobos, por sugestão do maestro Marlos Nobre, que muitos vêem como um novo Villa-Lobos.
O irreverente e brasileiríssimo Heitor Villa-Lobos terá seu centenário festejado aqui e no Exterior durante todo o ano. Dia 5, data em que se fosse vivo faria 100 anos, banda de música, coral, conjunto de choro, missa, violões, cordas, canto e rancho o homenagearam. Na rua Sorocaba, 200, Rio, onde está o casarão que abriga o Museu Villa-Lobos, dirigido com toda competência pelo violonista Turíbio Santos, a programação foi ininterrupta.
O cineasta Zelito Viana está em fase de pré-produção de um filme sobre a sua vida(1). Em vários países - especialmente nos EUA e França - concertos, gravações de discos e outros eventos reverenciarão sua memória. A Funarte promove concursos de monografia. Enfim, todos com alguma relação com a música tem que ligar-se a esta personalidade incrível, compositor múltiplo - do erudito ao popular - e sempre brasileiríssimo em suas raízes.
Afinal, ainda jovem, vendeu a biblioteca herdada de seu pai (um músico amador, seu primeiro mestre de clarinete e violoncelo) para viajar pelo Brasil. Viajou tanto e tão longamente que em 1912, sua mãe mandou celebrar uma missa em intenção de sua alma, pois já haviam se passado três anos sem notícias.
De 1912 a 1917, fixando-se no Rio de Janeiro, sentindo-se estimulado pela experiência adquirida em tantas viagens(2) e também forte como compositor, Heitor entregou-se ao trabalho de grande fôlego. Villa-Lobos jamais estudava o que quer que fosse superficialmente. A tudo ele se dedicava de corpo e alma, rompendo tradições e inovando métodos, o violão, por exemplo fora uma espécie de arquivo musical para ele. Aprendeu o violão clássico e acadêmico. Mas foi aprender também o violão dos chorões. Foi a primeira vez que um compositor de tal envergadura se dedicava com tal afinco a esse instrumento.
Como nenhum outro compositor que seria um nome consagrado da chamada música erudita (dirigiu, ao todo, 83 orquestras em 24 países), Villa-Lobos voltou-se sempre ao popular, a uma obra totalmente de raízes brasileiras e procurando grandes públicos (por exemplo, nos anos 30, preparava e apresentava grandes massas corais, que, no RJ, se transformariam nas monumentais concentrações orfeônicas em estádios de futebol, com até 40 mil escolares cantando músicas a duas, três e quatro vozes).
Jamais perdendo o contato com os artistas populares, foi intimo dos chorões de sua época, o tempo das polcas de Anacleto de Medeiros, do Corta-jaca de Chiquinho Gonzaga, dos tanguinhos de Nazareth. Como diz o historiador Moacyr Andrade, "tocou violão, ao lado de Sátiro Bilhar e Quincas Laranjeiras, em serenatas capitaneadas pelo cançonetista Eduardo de Naves, palhaço de circo". Dona Mindinha (sua segunda esposa) lembrava que "adorava escola de samba(3), achava linda a voz de Dalva de Oliveira, cantava quando ouvia Sílvio Caldas cantar, gostava muito de Noel Rosa".
Levou Cartola, a dupla Jararaca e Ratinho e outros a gravar com o maestro Leopoldo Skotowsky, quando ele passou pelo Rio de Janeiro, a bordo do navio Uruguai(4).
Autor de uma obra imensa, nos mais diferentes gêneros - e entre as quais se destacam os choros, que ele não só transpôs do popular urbano, carioca para o plano erudito, mas transformando-o e utilizando-o como um retrato psicológico de tipos populares. Villa-Lobos não pode, nem deve, ser confinado apenas a platéias informadas ou eruditas mas, sim, ser absorvido pelo público.
Pelão (João Carlos Botizelli), sem dúvida um produtor iluminado pelo talento e competência, antecipando-se mesmo as gravadoras e organismos oficiais teve, já em meados de 1986, uma idéia-mãe: realizar um álbum com artistas populares interpretando obras de Villa-Lobos. Diz Pelão:
- "Um Villa-Lobos sem casaca. Popular e belo como sempre foi!"
Graças ao apoio da Método, uma grande empresa de obras de São Paulo (que venceu, inclusive, a concorrência pública para restaurar o Teatro Municipal-SP) e através da agência Colucci & Associados Propaganda, Pelão e Pérsio Pisani realizaram um álbum maravilhoso. Em poucas semanas, viajando ao Rio, Porto Alegre e Recife, Pelão arregimentou doze virtuoses instrumentistas para uma gravação histórica que, dentro das inúmeras comemorações alusivas a este centenário de Villa-Lobos se destaca, sem favor, como uma das mais importantes. Espera-se que, após esta primeira prensagem, distribuída pela Método aos seus amigos e clientes, o disco tenha uma edição comercial, pois será injusto que um trabalho de tamanha competência não chegue a todos os interessados. Atenção, portanto, gravadoras: Há um disco pronto a ser lançado e capaz de vender bem e ganhar, tranqüilamente, prêmios de qualidade.
LOBOS POPULAR
O disco abre com as Bachianas nº4, na execução do duo de violão João de Aquino/Maurício Carrilo. As Bachianas - nove ao todo, foram escritas em 1930/1945, depois da segunda permanência de Villa-Lobos em Paris e traduzem a devoção do autor às matrizes folclóricas brasileiras e à música de Bach. Pelão escolheu além de a de número 4 (normalmente excetuada em solo de piano ou por grande orquestra), também, mais três outras: a de número dois (cuja tocata final, "O Trenzinho do Caipira", aparece aqui em execução de viola caipira com Roberto Correa); a Bachiana nº 5, criada originalmente para soprano e orquestra de violoncelos, aqui, com a sua "cantilena" inicial, hoje popularíssima em todo o mundo, na interpretação feita de Toinho Alves (baixo e voz), fundador e integrante do Quinteto Violado, com uma versão não ortodoxa, dotada de grande força.
Dos choros de Villa-Lobos, foram escolhidos dois: o de número um, recriado aqui pelo magnífico bandolim de Deo Rian com sutis traços pianeiros (foi, justamente dedicado por Villa a Ernesto Nazareth) e o choro nº 4, escrito originalmente para trompas e trombone, aqui com os violões de João Lira e Adelmo, evidenciando sobremodo as inflexões melancólicas que tanto caracterizam o ritmo. A Seresta nº 5 (as serestas, no total foram escritas 14, desenvolveram-se originalmente para canto e piano, sobre poemas de Manuel Bandeira, Olegário Mariano e outros desse nível) ganhou no som algo tristonho da rebeca, tocada com grande sensibilidade por Zé Gomes, a capacidade de comover ainda mais.
Já as "Impressões Seresteiras", peça do Ciclo Brasileiro (fase em que a música pianística de Villa-Lobos começou a chegar à virtuosidade) transcrito para bandolim, ganhou de Joel Nascimento uma interpretação à altura desse virtuosismo - abrindo o lado dois do disco.
"Mazurca", o primeiro choro da série "Suíte Popular Brasileira", aflorada no início do século (o autor tinha, na época, pouco mais de 20 anos), tem incontáveis gravações ao violão. Aqui a viola de Almir Sater ressalta-lhe a dolência de peça de inequívoca inspiração modinheira.
O "Schottish", também da Suíte Popular Brasileira, já teve gravações por alguns dos maiores mestres do violão em todo o mundo. Poucos, porém, com o desembaraço e a imediata empatia obtida por Rafael Rabello, 25 anos, cujo violão desconhece algumas dificuldades peculiares aos músicos estrangeiros na abordagem da obra violonística do Villa.
Finalmente, temos a "Valsa", ainda da Suíte Popular Brasileira. Peça bem característica da época dos chorões, marca acentuada pela limpeza do solo de Neco (nascido em 1932, aprendeu a tocar cavaquinho com o pai, descobrindo os segredos dos instrumentos; com Dilermando Reis, estudou violão; com Guerra Peixe, teoria musical).
Um disco maravilhoso ao grande Villa-Lobos, homenagem mais do que justa neste ano de seu centenário de nascimento.
Notas
(1) Além do filme de Zelito Viana ("Villa, o Coração do Brasil", roteiro de Joaquim Assis, com Armando Bogus no papel do compositor e direção musical de John Neschling), na Alemanha o cineasta Alexander Kluge pretende também realizar um outro filme sobre o compositor brasileiro ainda este ano.
(2) Villa-Lobos chegou a residir alguns meses em Paranaguá no início deste século, ali trabalhando inclusive como músico. Em 1979, quando das comemorações dos 20 anos de sua morte, o Museu da Imagem e do Som do Paraná (então dirigido com competência por Marcelo Marchioro) promoveu um concurso de monografia a respeito.
O vencedor foi o professor e pesquisador Benedito Nicolau dos Santos Filho, com um trabalho interessantíssimo, que até hoje não foi publicado.
(3) Em 1940, Villa chegou a fundar um bloco de carnaval - o "Sôdade do Coração", que há 47 anos desfilou sob a inspiração e a batuta do maestro. Na semana passada, o bloco foi revivido e percorreu as ruas por onde Lobos costumava andar, com a participação de ritmistas da grandeza de Paulo Moura, Turíbio Santos e Martinho da Vila.
(4) Quando o maestro Leopold Stokowski passou, no navio Uruguay, pelo Rio de Janeiro, manifestou a Villa-Lobos interesse em ouvir compositores populares. Heitor levou então vários amigos, entre os quais Cartola, Donga, Pixinguinha, Heitor dos Prazeres, que se apresentaram para o maestro americano, que gravou a audição. Posteriormente a CBS americana lançou um álbum com cinco discos 78 rpm contendo o histórico encontro. Há 9 anos que o Instituto Nacional de Música/Divisão de Música Popular tenta obter da multinacional americana os direitos para edição no Brasil desta preciosidade.
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