Amargo e bruto
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 28 de outubro de 1981
Em algumas seqüências de "Feios, Sujos e Malvados" (Cine Astor, hoje, último dia em exibição) alguns espectadores ensaiam risos. Mas parece não chegar a contaminar histrionicamente a ninguém. Ao contrário, há uma sensação de sufoco, de angústia, frente a imagens tão brutais, chocantes como a que Ettore Scola coloca neste filme denso e pesado, um documento amargo de nossos dias. "Feios, Sujos e Malvados" não é uma comédia, muito menos um filme agradável. Ao contrário: é desagradável a quem busca o belo, o colorido, o alienado. Mas é fascinante, série e importante - sem dúvida um dos melhores filmes do ano - para quem sabe exigir do cinema uma participação social. Com Scolla, o cinema italiano reassume a linha social que tão bem marcou o Neo-Realismo. Aliás, pode-se classificar "Feios, Sujos e Malvados" como um filme neo-realista - assim como o magnífico "Eles Não Usam Black-Tie" (cine Plaza, 4a semana) é também, a sua maneira, um filme neo-realista brasileiro - que reata as relações que Nelson Pereira dos Santos propunha há 27 anos passados em seu "Rio, 40 graus".
Focando toda ação numa família de favelados de Roma, "Brutti Sporchi e Cattivi" - que valeu a Scolla o prêmio de melhor diretor do festival de Cannes, há 5 anos - demorou para chegar. Suas imagens são contundentes e a realidade que espalha não são mera coincidência com o Brasil ou qualquer outro país subdesenvolvido. Aliás, por uma destas coincidências, o curta-metragem que o antecipa, sobre a vida do cientista Carlos Chagas, focaliza na última seqüência uma favela do Rio de Janeiro. Os casebres no alto - sobre a grande cidade. Momentos depois, é a favela de Roma - com suas habitações improvisadas, sujas, poluídas - em contraste com as cúpulas dos edifícios do Vaticano - vistas à distância, mas não tão distante que não passem a ironia e a crítica.
Scolla, um cineasta italiano de formação política vigorosa e cujo "La Terraza" (programado para o Brasil) venceu o festival de Cannes, há dois anos, não situa-se de forma panfletária ou maniqueísta em seu filme. Todos os personagens de "Feios, Sujos e Malvados" são colocados em seu deserdamento social, marginais da vida e convivendo animalescamente. A família de 15 pessoas que habita um casebre de duas peças, o patriarca (magnífica interpretação de nino Manfredi, possivelmente sua melhor atuação) que os humilha, a ganância pelo dinheiro, a entrada em cena da prostituta - uma presença felliniana, constituem - ganchos - para que, pouco a pouco, vários aspectos sociais sejam revelados/discutidos, mas sempre com uma consciência crítica - sem cair na separação de "bons" e "maus". Ao contrário, todos os personagens se apresentam , tal como o título - "Feios, Sujos e Malvados". Talvez a única exceção seja a personagem que abre e fecha o filme: a menina de botas amarelas que ao amanhecer na favela sai para apanhar água na bica comum. No final, a sua gravidez indica que a miséria, a luta pela sobrevivência, a sordidez terá seqüência naquele mundo sórdido, triste, marginalizado - mas admitido pela sociedade capitalista.
Com exceção de Nino Manfredi, não há atores ou atrizes conhecidos. Mas todos têm excelentes atuações, compondo tipos nauseantes em certos momentos (a seqüência em que se planejar a morte do velho pai, com o contraste da carne crua sendo devorada, é quase escatológica), mas que não poderiam aparecer de outra forma. Afinal, "Feios, Sujos e Malvados" não é um filme sobre ambientes sofisticados, romances cor-de-rosa e happy end. É cru, duro, violento como a vida - o que é mostrado nas imagens e na sua emocionante trilha sonora, de Armando Trovajolli.
Um filme marcante e inesquecível. Que merece ser visto por quem sabe apreciar o cinema com algo mais do que simples entretenimento.
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