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Aramis

Brasil-África numa trilha com balanço

A idéia de unir a poesia de nomes sagrados a versões musicais não é novidade. Olívia Hime, cantora e produtora cultural, realizou assim belos álbuns em homenagem a Manuel Bandeira (1886-1968) e Fernando Pessoa (1888-1935), no qual convocou nomes famosos da MPB para musicarem - e interpretarem - temas dos bardos. Quando Olívia desenvolvia o projeto em homenagem a Fernando Pessoa, um cineasta-compositor-agitador cultural baiano, André Luís de Oliveira, 41 anos, fazia também sua homenagem ao autor de "Poema em Linha Reta" reunindo em "Mensagem" (produzido especialmente como brinde da Gradiente, posteriormente editado pelo Estúdio Eldorado) algumas das mais belas vozes da MPB (Elizeth, Cyda Moreira, Ney Matogrosso, Elba Ramalho, etc.), interpretando músicas criadas a partir dos nomes de Pessoa. No finalzinho do ano passado, André Luiz de Oliveira surpreendeu em um novo trabalho: "A Trilha Sonora África-Brasil" (SBK/EMI/Odeon, dezembro/90). Numa época em que o som baiano é identificado com jogadas carnavalescas-marketing-comerciais (reggae, afrosamba, lambada, etc.), é positivo conhecer uma proposta que una a melhor poesia a boa música. Especialmente quando a iniciativa parte de um elétrico criador que, aos 22 anos, provocava polêmica no 5º Festival de Cinema de Brasília com seu estranhíssimo "Meteorango Kid, Herói Intergaláxico", filme maldito que nunca chegou a ter lançamento comercial mas que virou cult junto a certa faixa. Autor de outro longa ("A Lenda de Ibirajara, Senhor da Lança", que andou por festivais em Nova Delhi e Teerã), andanças pela Índia e Europa, violonista durante 6 meses num bar de Lisboa, realizador de filmes publicitários (cujos rendimentos aplicou numa experiência de cineclube em Campos do Jordão) e ainda pensando em fazer um novo longa (foi um dos fundadores da Casa da Imagem, São Paulo, que tem projetos de 5 filmes), André Luiz volta a agitar musicalmente com um projeto interessante. Assim é que trabalhou sobre um tema que lhe é bastante familiar - as raízes africanas, Bahia - enxertando com poesias de Castro Alves ("Navio Negreiro IV") e Gonçalves Dias ("Canção do Exílio"). Valeu-se também da parceria do sensível Costa Netto (ex-presidente do Ecad, bom poeta, co-autor de três das dez faixas do álbum, "Culturas Diversas num Mesmo Caldeirão", como sentenciou o jornalista Antônio Mafra, numa lúcida análise deste disco que começa com um fado ("O Quinto Império", com Sandra de Sá) que vira samba, seguida da chamada música de trabalho, "De Onde Eu Vim" (André Costa Netto), na voz forte de Gerônimo, uma das revelações baianas dos anos 80 e cuja letra "descreve o sentimento do africano que vê seu sangue tingindo a areia branca", como diz Mafra, que aposta que esta faixa, levada em ritmo de reggae, tem tudo para explodir em muitas praças. Lazzo, outra belíssima voz negra, que injustamente ainda não teve maior reconhecimento até hoje (apesar de elepês feitos na Philips e Copacabana), com muitas andanças pelo mundo (e as prolongadas ausências do Brasil explica sua carreira irregular) denuncia em "Tudo Igual" (composição só de André Luiz) a herança da Lei Áurea: "Favelados, indigentes / sem dinheiro / todos descendentes de um povo guerreiro". Djavan em "Aboio Blues" (também só de André Luiz) nos remete para outro foco de escravidão: os campos de algodão às margens do Mississippi, EUA. A coloração brasileira aparece na delicada textura de apoio do arranjo. Há dois momentos de flagrantes contrastes: Pena Branca e Xavantinho, dizendo a "Canção do Exílio", como uma moda de viola, e outro, a blondie-revelação 89, a gaúcha Adriana Calcanhoto (cujo primeiro elepê está saindo pela CBS) conduzir "Navio Negreiro IV" nas ondas da Bossa Nova, recheada de teclados. Outras presenças femininas: a delicada Leila Pinheiro na "Estrela Brasileira" (bela letra de Costa Netto), Marinês da Banda Reflexus em "Oxaguiã" e, convidada maior, Maria Bethânia em "Mamãe Oxum", cuja letra de Costa Netto a encantou e a fez participar do projeto, com esta canção, uma quase oração: "um olhar de mulher (...) pode cegar / mas na noite escura vem me guiar". E até o próprio André aparece como intérprete no afoxé "Filhos de Odé" (parceria com Fredy Vieira), sem comprometer e dando um toque final neste projeto inteligente, eclético e dos mais interessantes - que só não entrou nos destaques de 89 no suplemento dos "Melhores" ("O Estado do Paraná", 07/01/90), porque o disco só nos chegou aos ouvidos duas semanas depois que encerramos aquele trabalho.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Música
17
11/02/1990

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