Brincando com assunto sério
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 08 de julho de 1986
Até que ponto um assunto sério - o mercado de armas - deve ser tratado em rítmo de comédia?
A pergunta acompanha o espectador mais consciente após assistir "Uma Tacada da Pesada" (Cine Astor, até amanhã), na qual uma questão atualíssima é vista de forma descontraída, em rítmo de piada. O comércio de bilhões de dólares que movimenta uma das mais sórdidas indústrias do mundo - a venda de armas - e que motivou ao inquieto jornalista Anthony Sampson um recente livro-denúncia ("Os Vendedores de Armas", Record, 406 páginas, Cz$ 124,90) não teve, até hoje, filmes corajosos a respeito. Quando muito, o papel dos contrabandistas e vendedores de armas para insuflar revoluções nos países do terceiro mundo entra de pano de fundo para algumas fitas - não se podendo esquecer, neste caso, o aproveitamento que já por três vezes foi dado no cinema ao célebre conto de Ernest Hemingway (1899-1961). "To Have and to have".
Entretanto, até hoje, não se foi a fundo na questão armamentista, mostrando (e denunciando) os interesses multinacionais da imensas corporações industriais que agem por trás dos governos, especialmente nos países do Terceiro Mundo, estimulando, provocando e financiando golpes de Estado, revoluções e guerrilhas, no sentido de fazer negócios de bilhões de dólares - pagos com a miséria e sangue de milhões de pessoas.
Realmente, abordar um tema como este exige coragem e embora William Friedkim, 47 anos, tenha em sua filmografia filmes de temas explosivos como o homossexualismo ("Os Rapazes da Banda", 70) e o tráfico de drogas ("Operação França", 71), não seria neste "The Deal of Century", rodado em 1984, que tocaria o dedo na ferida da indústria bélica. Quando muito, uma sátira bem comportada, superficial que chega quase ao rítmo pastelão. O resultado é melancólico: não funciona nem como diversão - já que o assunto é pesado demais para estimular risos - nem tem a seriedade esperada. Rendas baixas e um fracasso até certo ponto merecido. Procurando justificar sua ótica, Friedkim declarou quando do lançamento do filme:
- "Ele é uma mistura realista (sic) de fatos verdadeiros que aconteceram nos últimos 15 anos - tratados com ficção, é claro - mas com pouquíssimas modificações. Li quase todos os livros, jornais e artigos sobre a corrida armamentista. Se trata de um mundo surrealista que, na minha opinião, tem pouquíssima coisa a ver com os verdadeiros planos de defesa de meu País".
Em alguns momentos - inclusive na lírica sequência inicial, com a infantil voz de Nikka Costa cantando "Someone To Watch Over Me" - se tem a sensação de que se verá uma sátira ao estilo do clássico "Dr. Fantástico" (Dr. Strangelove, 64, de Stanley Kubrick) - no qual, a guerra nuclear foi tratada com humor, mas dentro de uma linguagem extremamente feliz. Entretanto não é fácil ter a genialidade de Kubrick, de forma que "Uma Tacada da Pesada" perde-se em pouco tempo. A ação intensa - começando num hipotético país da América Latina - São Miguel - com suas figuras estereotipadas (a começar pelo ditador Cordosa, boa interpretação de William Marques) não chega a impedir a monotonia de sequência posteriores - quando, pela própria ação, um rítmo de thriller deveria marcar o filme. Bons intérpretes como Chevy Chase, Gregory Hines (o bailarino negro visto recentemente em "O Sol da Meia Noite" e "Cotton Club") e mesmo Vince Edwards (como Frank Stryker, o big boss da Luck Up, a indústria armamentista) estão contidos - e até a bela Sigourney Weaver - com exceção da primeira sequência em que aparece - acaba eclipsada. Não é, portanto, sem razão, que na sessão do último sábado (20 horas), pelo menos uma dezena de espectadores deixasse a sala de exibição.
Uma boa idéia mal executada - comprometida pelo roteiro tolo de Paul Brickman faz com que "Uma Tacada da Pesada" fique como a promessa do que poderia ter sido. E o tema - a corrida armamentista, a exploração das multinacionais da morte no terceiro mundo - continua a espera de um grande filme denúncia. Aliás, Costa Gravas já pensou em algo parecido, mas pelo visto, acabou desistindo. Uma pena!
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