"Cobra", o veneno contra a liberdade cinematográfica
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 02 de setembro de 1986
Até às 17 horas de sexta-feira, 29, a decisão do sr. Alberto Salém, presidente da Warner Bross,no Brasil, era de que não aceitaria os cortes impostos pela Censura Federal para que "Cobra/Stallone" continuasse em exibição. Mas entre às 17 e 20 horas, alguma coisa mudou, pois às 21 horas, em Florianópolis, onde se encontrava em viagem de trabalho, João Aracheski,
executivo da Fama Filmes, recebeu um telefonema dizendo que "Cobra" deveria continuar, mesmo com os cortes.
Na manhã de sábado, na cabine de projeção do cine Vitória, aconteceu a "execução" da cópia que há 24 dias estava em exibição naquela sala. O gerente do cinema, Oswaldo Scaramella, o gerente do escritório da Warner em Curitiba, Lourival Henrique Schelpak e mais o operador Aroldo Leão, guilhotinaram as cinco seqüências de "violência extrema" e que levaram o ministro Paulo Brossard, da Justiça (que não viu o filme), a exigir a retirada do filme em exibição - ou, no mínimo, os cortes.
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Em 25 dias de exibição "Cobra" teve um recorde de bilheteria: 86.187 espectadores deixaram nas bilheterias do Cine Vitória Cz$ 1.277.806,00. Em todo o Brasil, as 60 cópias desta produção da dupla Menahem-Golam faturou mais de Cz$ 20 milhões - e atingiria, com toda a certeza, o triplo antes de esgotar as possibilidades - já que até agora estava em exibição nas cidades principais, onde se concentra 70% do mercado cinematográfico.
Com o corte imposto pelo ministro da Justiça, o filme teve sua metragem reduzida em cerca de 15 minutos, passando apenas 85 minutos. Além do desenvolvimento dramático ter sido prejudicado, também a própria história fica meio sem sentido. Independente da apreciação artística - (e, particularmente, consideramos este filme de George Pan Cosmatos, um dos mais medíocres já realizados nos últimos anos) não se pode é concordar da forma que o ministro da Justiça agiu, numa atitude tão autoritária quanto é a própria violência explícita do filme.
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"Cobra" é um filme medíocre, comercial, realizado apenas para atrair um público cada vez mais ansioso em ver na tela a violência urbana, num reflexo do que é a nossa própria sociedade. Achar que este filme, em si, é o único responsável pelo campo-de-batalha que policiais, ladrões, assassinos e mesmo pessoas normalmente pacíficas mas, que, em certo momento, são obrigadas a apelar para a violência, transformam as ruas das grandes cidades, é ingenuidade.
O Tenente Cobretti (Sylvester Stallone), da polícia de Los Angeles, é tão violento quanto o sargento Harry (o "Dirty Harry"), que Clint Eastwood interpretou numa série de filmes nos anos 70, e tantos outros policiais que, diferentes daquela imagem do private eyes dos romances de Raymond Chandler ou Dashiell Hammet, ou do cerebral Hércules Poirot de George Simenon - para só citar alguns exemplos - faziam da investigação policial um exercício de inteligência e dedução, ao invés de acrobacias sangrentas. Não há em "Cobra" - como não existiram em outros filmes violentíssimos, produzidos nestes últimos anos (e todos com rendas extraordinárias: as duas partes de "Rambo", "O Exterminador do Futuro" etc.) a menor sutileza, a criação inteligente, a estética que possibilite sua classificação ao menos como um produto cultural realizado por aquela indústria que já foi chamada de sétima arte.
Observado, assim, o prisma estético, seria fácil concordar com os que ofendem [defendem] a proibição pura e simples de "Cobra" e outros filmes que por esta ou aquela razão desagradem autoridades ou determinadas instituições. Há poucos meses foi o caso "Je Vous Salue, Marie" de Jean Luc Godard. Agora é "Cobra". Amanhã poderá ser qualquer outro filme que contenha em suas imagens ou idéias algo que irrite os donos do Poder e, assim, pouco a pouco, estaremos regredindo aos anos 60/70, com a lista imensa de filmes, livros, peças que ficaram proibidas naqueles anos negros.
Afinal, pode-se discordar e desprezar produtos comerciais como "Cobra", mas estimular a sua proibição ou cortes é uma atitude tão fascista quanto o comportamento do próprio personagem - aliás um alter-ego perfeito do ator-roteirista Sylvester Stallone, demonstração viva de como decaiu o cinema americano em termos comerciais.
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