Colonialismo Cultural (I)
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 10 de março de 1978
Centenas de posters estão cobrindo muros e prédios da cidade anunciando um "Rock Concert made in Tupi Guarani", no Guairão, na noite de 18 de março. A estrela deste espetáculo é apresentada como "Tayná Y Sus Rayos". Trata-se, ao que se informa, de uma indígena da tribo dos Carajás, da Ilha do Banal, que canta (?) em francês, português, inglês e tupi guarani.
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Por trás desta informação está, sem dúvida, um tema que exige reflexões. Independente dos méritos que Tayná possa ter, como vocalista, não deixa de ser chocante para quem tem a mínima consciência em torno da cultura brasileira ver a humilhante condição de uma indígena ser apresentada num espetáculo intitulado "Rock Concert made in Tupi Guarani". Por certo, o empresário do espetáculo deve ter uma farta argumentação para justificar este tipo de promoção, misturando o chamariz do que existe de mais supérfluo com aquilo que se poderia se constituir em uma visão primitiva da expressão musical brasileira. Um release distribuído pelo escritório de Zezé Moreira (Rua Marechal Deodoro, 450, 12.º andar, Curitiba), responsável por este espetáculo, afirma que Tayná é uma "cantora nativa de sangue e raça. Traz no olhar o mistério da selva e na voz o som selvático. Tayná quando ouve o rufar dos tambores, o repicar dos atabaques e o som das flautas despreende-se deste mundo agitado e cantando para o povo que procura melhor entender a sua linguagem e o seu canto. Sua voz parece o eco das montanhas".
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Seria injusto julgar o talento (ou não) de Tayná por antecipação. O que é preciso colocar-se, aqui, é o colonialismo cultural a que se submetem pessoas ingênuas, como no caso desta indígena, que para ser aceita tem que aceitar a um esquema que apresenta como estrela de um "rock concert". Seria dos mais válidos um trabalho sobre a cultura musical indígena, com uma visão antropológica, capaz de mostrar as platéias urbanas os cantos, danças e tradições da Ilha do Bananal. Mas a utilização de uma indígena, num espetáculo "vendido" como alienígena, destacando como "méritos" o fato de ela cantar (se cantar?) em francês e inglês, é fato dos mais graves, que não pode deixar de ser registrado e criticado. O sr. Zezé Moreira, "pessoa que ela confia e que sabe também cuidar de todos os seus negócios artísticos não só no Brasil, como também, no Exterior", conforme o release distribuído, informa que atualmente Tayná faz um filme com Pelé (qual? Onde?).
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Inexiste no Brasil qualquer disco com a música indígena. Na Europa e Estados Unidos é possível encontrar toda uma coleção produzida pela Library of Congress of United states of America, na série "Folkways", dedicada aos cantos e sons dos índios da América Latina, com 8 volumes dedicados ao Brasil. A única experiência feita pela Phonogram, há 7 anos, de esitar um lp com o canto dos índios do Xingu, não permaneceu sequer seis meses em catálogo e hoje é um disco raríssimo. Existe, evidentemente, uma cultura indígena, própria, autêntica, que inclui os sons e uma música primitiva. Tayná, da tribo dos Carajás, da Ilha do Bananal, confiando na informação de seu empresário, pode inclusive ter méritos para transmitir a informação cultural de sua raça. Mas trazê-la num espetáculo em que o chamariz é apresentá-la como uma cantora de rock, é mais do que colonialismo cultural. É ofensa e agressão à raça indígena, à capacidade do povo brasileiro em entender os seus valores. Um típico caso em que até a intervenção da Funai se justificaria, já que está na hora de, realmente, proteger os nossos indígenas - e seus (massacrados) valores culturais.
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Em tempo: até ontem, o diretor artístico da Fundação Teatro Guaira, J. D. Baggio, desconhecia oficialmente a realização deste espetáculo. A data solicitada pelo empresário Zezé Moreira - conforme processo aprovado pelo conselho deliberativo da FTG- se destinaria a um show de compositores e intérpretes paranaenses.
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