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Aramis

As delicadas viagens para o mundo interior

"Em aviões, sempre leve um livro a fim de proteger-se de estranhos. Revistas acabam logo e os jornais de outros lugares sempre lhe lembrarão que ali não é o seu lugar" (Anne Tyler, "O Turista Acidental") Entre outros méritos, "O Turista Acidental" (Cine Astor, até amanhã, 5 sessões) coloca em questão aquela já (cansativa) discussão: as relações da obra literária e a sua transposição à tela. Assunto que vem sendo debatido há muitos anos, desde quando o cinema descobriu a literatura como base para suas histórias - e que nos últimos tempos tem adquirido maior destaque, com adaptações de obras ditas difíceis, embora, muitas vezes, best sellers como, por exemplo, "O Nome da Rosa", que Jean Jacques Arnaud transpôs a tela em 1986 do livro de Umberto Ecco. Best seller há quatro anos, desde que saiu a primeira edição nos EUA (no Brasil, em tradução de Wilma Freitas Ronald de Carvalho, Imago Editora, 277 páginas, já em 6ª edição), "O Turista Acidental" ganhou muito em sua transposição para o cinema. Embora o romance de Anne Tyler, americana de Minnesota, 48 anos, tenha a originalidade e o desenvolvimento que faz o prestígio de uma boa contadora de história (é também autora de "Jantar no Restaurante da Cidade", já lançado pela mesma Imago), faltava, entretanto, profundidade ao personagem central, Macom Leary, uma dessas pessoas que detestam viajar mas que, ironicamente, vive de escrever guias de turismo que permitam aos que odeiam viagens se sentirem em casa quando são obrigados, a serviço, a viajarem a outras cidades e países. Só esta incoerência - entre o estar "em casa" e o enfrentar sempre o inesperado (e muitas vezes desagradável) do "lá fora" já daria uma contradição para reflexões - e este ponto, de certa forma, perde-se na narrativa de Tyler pelo excessivo realismo, com longas (e até cansativas) descrições. Lawrence Kasdam, um americano de West Virginia, formado pela Universidade de Michigan, 39 anos, aprendeu a escrever de forma objetiva em seus tempos de publicitário. De uma associação com os dois golden boys do cinema americano - George Lucas / Steven Spielberg - nasceria o roteirista enxuto, perfeito ("O Império Conta Ataca", "O Retorno de Jedi", "Os Caçadores da Arca Perdida"), desenvolvendo uma técnica tão perfeita que até histórias idiotas (como "Brincou com Fogo Acabou Fisgado") resultariam, no final, em bons roteiros. Para chegar a direção não seria difícil, estreando numa homenagem ao chamado film noir dos anos 40 - "Corpos Ardentes" (Body Heat, 81) que, praticamente, daria a William Hurt e Kathleen Turner a grande chance de aparecerem. Em seu longa seguinte, "O Reencontro" (The Big Chill, 82), novamente com Hurt (ao lado de Tom Selleck, Glenn Close e outros artistas que se projetariam nesta década), mostraria toda a sensibilidade e humanismo ao analisar a mudança de comportamento de um grupo de colegas de universidade que se reencontram por uma noite, após a morte de um deles. Foi um dos filmes marcantes desta década, emocionante em sua estrutura. Depois, como para demonstrar seu ecletismo, Kasdam decidiu reviver um gênero clássico do cinema americano, o western, em "Silverado" (1985), resultando outro trabalho admirável. Portanto, há dois anos, ao chegar a transposição do romance de Anne Tyler (seus filmes anteriores tiveram roteiros originais, Kasdam estava suficientemente amadurecido para realizar uma obra de maior abrangência, ultrapassando o simples "plot" e, tal como em alguns dos melhores momentos dos mestres do cinema europeu (Antonione, Bergman) construir personagens que mergulham em profundidade - mas, no caso com uma clara visão do "american way of life", o que levou a muitos considerarem "The Accidental Tourist" como comédia. Macom Leary (William Hurt, numa interpretação que o faria merecedor de um segundo Oscar - o primeiro já conquistou em 1987, por "O Beijo da Mulher Aranha") é um personagem de uma empatia dramática, sofredora e com muito humanismo: solitário e sofredor em seu isolamento aprofundado, após a morte do filho de 12 anos, assassinado há um ano numa lanchonete, torna-se tão fechado em sua vida que nem mesmo a esposa Sarah (Kathleen Turner) resiste e pede a separação. Por ele aceita, apaticamente, como tudo que o cerca: o trabalho convencional, o acidente que o obriga a voltar ao neurótico universo dos irmãos - Rose (Amy Wright), Charles (Ed Begley Jr.), e Julian (Bill Pullman), praticamente isolados em seu mundo de paz (e segurança) numa velha casa num bairro de Baltimore (uma cidade colocada de forma claustrofóbica, asfixiante, como decor da história), no qual os alimentos devem ser classificados nos armários em ordem alfabética e onde não se atende telefonemas (aliás, não deixa de ser uma idéia, para quem está cansado de ser incomodado em longas chamadas). A quebra de universo huis clos por uma mulher divorciada, Muriel (Geene Davis, Oscar de melhor coadjuvante-89), mãe de uma criança com sérios problemas de saúde, e do editor dos guias de Leary, Julian (Bill Pullman), que se interessa por sua irmã, representam um rompimento num esquema aparentemente "seguro". Os conflitos de relacionamentos - delicados, num fio tênue de retorno a uma vida normal - faz com que o relacionamento com Muriel (que se revela também frágil, na busca de segurança de um casamento) e a volta de Sarah, um ano depois da separação, abalam ainda mais a Macom Leary, especialmente em sua viagem a Paris, a trabalho - mas que acaba se tornando o momento de decisão. Além do roteiro perfeito, que deu aos personagens e a ação uma profundidade, humanismo e, especialmente, uma empatia que não se encontra no livro de Anne Tyler, o filme ganhou pela excelência do elenco. Cada intérprete parece expor os nervos em suas atuações - seja na contenção de um Ed Begley Jr., na curta intervenção como o irmão Charles - os momentos magníficos de Geene Davis (vista até agora apenas numa ponta em "Tootsie", reprisado domingo na Rede Globo e em "A Mosca"), capaz de transpor o caricato para o dramático. Kathellen Turner, mesmo sem a sensualidade de "Body Heat" é fascinante também - em momentos especiais. Mas Hurt, compondo um personagem que parece ter saído de um filme de Antonione (da melhor safra) está esplêndido - em sua expressão sofrida, angustiada - e que só sorri no close final. John Willians, compositor acostumado a criar trilhas monumentais, de muitos efeitos, mostra seu lado camerístico na música para emoldurar a fotografia de John Bailey, simples e igualmente respeitosa. "O Turista Acidental", candidato a ficar entre os 10 melhores filmes do ano, sai de cartaz amanhã. Menos de 3 mil espectadores e a confirmação de que a "inteligente" platéia curitibana continua a dar provas da maior insensibilidade para com os melhores filmes que aqui chegam. Pois é! E ainda há quem insiste em falar no marketing cultural da cidade... LEGENDA FOTO - Macom Leary (William Hurt): um turismo para o dentro da gente. Um filme profundo, humano e que ultrapassa as qualidades do livro. Em exibição hoje e amanhã no Astor.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
01/08/1989

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