É fogo o desperdício de um material sério
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 23 de janeiro de 1989
Era a grande esperança em torno de "Deus é um Fogo" (Cine Groff, até amanhã, 5 sessões). Afinal o diretor Geraldo Sarno apesar de uma carreira bissexta, teve boa experiência na área do documentário e fez uma digna transposição à tela do empresário nacionalista Delmiro Gouveia, assassinado em 1919 por grupos multinacionais que viam com preocupação sua ação em favor da industrialização independente no Nordeste.
Rodado em seis países - Nicarágua, Equador, México, Cuba, Peru e Brasil - para mostrar a presença de uma nova Igreja voltada às lutas sociais, "Deus é um Fogo" poderia ser uma amplificação daquilo que já se havia feito em três contundentes documentários sobre a chamada Teologia da Libertação: "Igreja da Libertação" (Silvio DaRim), "A Igreja dos Oprimidos" (Helena Salem/Jorge Bodanski) e "Fé na Caminhada" (frei Conrado). Infelizmente, por falta de ritmo, narrativa e sobretudo roteiro inexistente e montagem confusa, o documentário de Geraldo Sarno se perde em suas boas intenções, desperdiça um excelente material conseguido em várias fontes e praticamente não consegue comunicar nada do que pretendia.
Mais grave ainda é o fato da cópia em exibição estar legendada em espanhol para as partes rodadas no Brasil (quando o narrador Francisco Milani fala em português) e não trazer legendas nos longos depoimentos nos outros países. Se alguém pensa que é fácil entender espanhol, tente acompanhar uma longa declaração de um sacerdote peruano ou de um lavrador equatoriano - como são colocadas no filme. Caberia ao coordenador de cinema da Fucucu, Francisco Alves dos Santos, ex-seminarista, ligadíssimo aos movimentos de cinema religioso, ter exigido da Saruê Filmes, uma copia com legendas. Além do mais, como a cópia foi feita em 16mm, sua projeção ocupa menos de um terço da sala do Cine Groff - dificultando a visão.
Só mesmo por interesse em torno da questão da Igreja na América Latina é que justifica a visão deste documentário que tinha tudo para ser um filme importante (e na sexta-feira, aqui antecipamos nosso otimismo a respeito) mas que visto na tela, mesmo com toda simpatia que o tema nos merece, não deixa de ser decepcionante.
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Geraldo Sarno deve ter imaginado que este filme seria visto apenas por platéias informadas, pois não teve a menor preocupação de fazer uma montagem com alguma seqüência cronológica e oferecer informações sobre muitos personagens importantes. Por exemplo, o assassinato de monsenhor Oscar Romero, em El Salvador, foi muito mais bem explicado em "El Salvador - O Martírio de um Povo", de Oliver Stone, do que neste documentário no qual há imagens de cinejornais do arcebispo assassinado por forças da direita (a propósito, atualmente está em produção um filme biográfico a seu respeito). As (raras) imagens que o jornalista soviético Novikov conseguiu com o padre Gaspar Leviana (1918-1978), comandante guerrilheiro da Frente Sul, na Nicarágua, também perdem-se por falta de maiores informações.
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Justamente pela admiração que merecem os cineastas voltados em documentar o real e mostrar nas imagens um pouco dessa nossa América tão espoliada e sacrificada, não deixa de ser irritante quando um material conseguido com tantas dificuldades acabe se perdendo justamente na sala de montagem. A impressão que se tem, ao final, é que o que chegou foi um copião e não a montagem definitiva. Afinal, Sarno teria talento e competência para apresentar um resultado melhor de um projeto bem intencionado e honesto.
LEGENDA FOTO - Padre Uriel Molima, um dos sacerdotes da Igreja da Libertação, que aparece em "Deus é um Fogo", documentário de Geraldo Sarno em exibição no Cine Groff.
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