"Romero", denúncia de utilidade pública
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 05 de julho de 1990
Para driblar a crônica crise de falta de recursos, que normalmente inviabilizaria qualquer promoção, o sempre criativo Valêncio Xavier está realizando no Museu da Imagem e do Som um curso sobre cinema documentário que vem tendo ótima freqüência e bons resultados. O próprio Valêncio, um apaixonado pelo documental, faz as palestras e, com seus contatos preciosos, conseguiu clássicos momentos do cinema documentário, que, em vídeo, estão revelando para uma nova geração a importância do olhar cinematográfico sobre a realidade. Seria interessante que, no futuro, este curso pudesse ter uma seqüência com aquilo que Sérgio Augusto chamou de "cinema de utilidade pública".
Tratam-se de filmes, nem sempre obrigatoriamente documentários, mas normalmente baseados em fatos reais que funcionam como verdadeiros sinais de alerta em vários aspectos. Independente dos méritos estéticos, os "filmes de utilidade pública" têm que ser vistos como formas de informação à grandes audiências, de aspectos, muitos dos quais recentes, que passam desapercebidos no dia-a-dia - ou ao menos não avaliados corretamente. Um exemplo maior disto é "Romero" (Cinema I, 3 sessões, até hoje em exibição). Coincidentemente, este longa-metragem sobre o assassinato do arcebispo de El Salvador, ocorrido há dez anos, chega na mesma semana em que outro filme baseado em fatos reais - o seqüestro da herdeira Patty Hearst - está também em cartaz (Cine Astor, 5 sessões). Ambos, infelizmente, sem atrair maior público, o que encerra suas carreiras tão precocemente - embora "O Seqüestro de Patty Hearst" esteja disponível em vídeo (lançamento Alvorada).
xxx
Em 1985, no contundente "El Salvador - O Martírio de um Povo" (também disponível em vídeo), terceiro longa-metragem de Oliver Stone ("Platoon", "Wall Street"), tinha uma seqüência impressionante: o assassinato na catedral de San Salvador do arcebispo Dom Oscar Romero, cujas posições corajosas pelos direitos humanos, denunciando a violência da ditadura militar naquele pequeno país, irritaram os "gorilas" e o levaram a ser brutalmente assassinado, num complô liderado pelo extremista Roberto D'Auibusson, do grupo radical Arena.
Focando sua ação sobre o trabalho de dois jornalistas americanos em El Salvador - e procurando dar uma visão geral da calamitosa intervenção americana em apoiar regimes de extrema direita no Terceiro Mundo, Stone usou o episódio da morte do arcebispo Romero apenas como mais um detalhe na escalada de violência daquele país. Dois anos antes, o australiano Roger Spootswood já havia realizado outro filme de utilidade pública, denunciando a violência militar na Nicarágua, em "Sob Fogo Cerrado" (Under Fire), também relatando a história a partir da visão de dois jornalistas.
Entretanto, o assassinato de um arcebispo da Igreja Católica no interior de uma catedral, determinado por razões ideológicas, não poderia ficar apenas numa breve seqüência de pouco mais de dez minutos. Assim, quatro dias após o assassinato de Dom Oscar Romero, o padre Ellwood Kiesser, da Paulist Picture, recebeu o recorte de jornal com a notícia, enviado pelo escritor John Secret Young, com um bilhete: "Isto pode dar um filme muito interessante". E daria. Só que passariam quase nove anos para ser montada uma produção independente (embora, no final, distribuída pela Warner), reunindo recursos de fundos religiosos, trabalhos de pesquisas na conflituosa El Salvador, para se ter uma imagem correta do arcebispo Romero, as circunstâncias em que morreu e, especialmente, a transformação político-ideológica de um religioso.
xxx
É incrível que existindo tantos movimentos religiosos, de direitos humanos, pastorais e outras correntes locais em torno da Igreja, um filme como "Romero" passe tão anonimamente (algumas sessões quase têm sido canceladas, por falta de espectadores), quando aborda aspectos contemporâneos, atuais e, principalmente, denuncia a violência na América Latina, pois em El Salvador - como em outros países da América Central - pouca coisa mudou. Assim como o australiano Spootswood em "Sob Fogo Cerrado" soube entender, com sensibilidade, a tragédia do povo da Nicarágua, aqui, outro australiano, em sua estréia no cinema americano, John Duigan, soube contar em imagens claras, realistas, uma história que não precisa ser inventada. Na subdesenvolvida República de El Salvador (21.393 km2, menos de 5 milhões de habitantes), o governo que tomou o poder em 15 de outubro de 1979 não conseguiu conter a violência de extrema direita nem eliminar a guerrilha. Na escolha do novo arcebispo, o Vaticano optou, com apoio das correntes conservadoras - do clero e da elite local - por um intelectual, sem ligações com grupos católicos de vanguarda: Dom Oscar Romero. Entretanto, bastariam poucos meses para que o arcebispo constatasse a necessidade de a Igreja tomar uma posição pela defesa da população civil, pois só nos primeiros meses de 1980 nada menos que 4 mil pessoas seriam assassinadas pelos militares (hoje, esta cifra passa dos 70 mil). A gota d'água foi o assassinato do padre Grande, ligado a Teologia da Libertação. Até então ainda tentando conciliar seu pastorado entre o poder militar, as elites e povo, Dom Romero decidiu-se pelo povo e toma posições corajosas que o levariam a sofrer ameaças para, finalmente, em 24 de março de 1980, ser assassinado no interior da catedral. Em relação à representação de sua morte feita por Oliver Stone em "El Salvador - O Martírio de um Povo", a versão aqui apresentada é um pouco diferente: ao invés do assassinato ter ocorrido na hora da Eucaristia, com a catedral lotada, quem dispara no arcebispo é um franco atirador, armado pela direita civil (mas, logicamente, apoiado pelos militares) num momento em que no interior da catedral encontravam-se alguns religiosos.
Um detalhe, enfim, que em absoluto não prejudica o que há de mais fundamental: o clima de denúncia que o filme traz em todas suas imagens, o sentido jornalístico da narrativa do preciso roteiro de Young, a montagem nervosa que como a música de Gabriel Yared (um compositor em escalada, atualmente assinando trabalhos em seis novos filmes europeus recém concluídos), harmonizam-se ao clima de um cinema propositadamente reflexivo, para ser pensado, discutido - contendo uma informação necessária de que maiores faixas de espectadores conheçam. Raul Julia, ator já bastante conhecido, entusiasmado com o personagem real (tanto é que aceitou faze-lo ganhando um salário bem reduzido, está excelente). Seu tipo latino (ele é porto-riquenho) compõe com perfeição o arcebispo Romero. Dentro do amplo espaço sobre a igreja e as lutas sociais, que tem merecido alguns documentários de grande impacto, "Romero" é uma obra plena, consciente e honesta. Fugindo de maniqueísmos - apesar da condenação natural dos militares que transformaram El Salvador num país repleto de violência, morte e miséria - o roteiro de John Secret Young vai mais além: os interesses das elites econômicas que ainda se beneficiam da paranóia do combate ao comunismo, as divisões da Igreja Católica e, sutilmente, mesmo o Vaticano - que ao escolher o aparentemente acomodado Dom Oscar Romero, julgava, há 11 anos, que estava colocando na direção da Igreja em El Salvador, um homem acomodado e capaz de servir aos interesses dos donos do poder.
LEGENDA FOTO - O diretor John Duigan dirige Raul Julia numa cena de "Romero", um filme de utilidade pública em exibição ainda hoje e amanhã no Cinema I.
Enviar novo comentário