João do Vale, com bons padrinhos, em belo disco
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 14 de fevereiro de 1982
O principal evento fonográfico deste morno início de 1982 está sendo o lançamento do elepê de João do Vale. Um grupo superstars de nossa melhor MPB – Chico Buarque, Raimundo Fagner (estes, junto a Fernando Faro, também produtores), Antônio Carlo Jobim, Nara Leão, Zé Ramalho, Amelinha, João Donato, Clara Nunes – entre outros, decidiram catipultuar o relançamento deste compositor, no registro civil João Batista do Vale, maranhense de Pedreiras, 48 anos a serem completados a 11 de outubro.
É significativo que tantos nomes de prestígio se voltem a João do Vale possibilitando assim que este artista que tão bem representa a musicalidade das camadas mais populares tenha a oportunidade de fazer um disco que possa chegar a uma faixa mais ampla de público – que, normalmente ignoraria João, como vem acontecendo há tantos anos – apesar de em 1964 – ele ter sido lembrado para dividir com Zé Keti e Nara Leão, a montagem original de Opinião, dirigido por Oduvaldo Viana Filho, Paulo /pontes Armando Costa, que daria nome a um teatro no Shopping Center Copacabana e ficaria como um marco de resistência cultural (primeiro show protesto montado após o golpe de abril) e onde, na substituição de Nara Leão, estrearia Maia Bethânia. Filho de família humilde, a trajetória de João do Vale até chegar ao Rio foi das mais difíceis. Aos 13 anos deixou Pedreiras e foi para São Luís, onde participou de um grupo de bumba-meu boi, o “Linda Noite”. Dois anos depois, começou sua viagem para o Sul, sempre em boléias de caminhões: em Fortaleza foi ajudante de caminhão; em Teófilo Otoni, MG, trabalhou no garimpo e no Rio, onde chegou em dezembro de 1950, empregou-se como ajudante de pedreiro numa obra em Ipanema. Passou a freqüentar programas de rádio, para conhecer os artistas que admirava e tentar mostrar suas composições, em maioria baiões. Depois de dois meses de tentativas, teve uma música de sua autoria gravada por Zé Gonzaga, “Cesário Pinto”, que chegou a fazer algum sucesso no Nordeste. Luís Vieira, também nordestino, procurou ajudar o pobre João e corrigiu muitas de suas músicas, algumas das quais gravou. Em 1953 Marlene gravaria “Estrela Miúda” – mas só em 1964, participando de “Opinião” é que João começou a ser mais notado – especialmente com êxito de sua música “Carcará”, parceria com José Cândido – e que Maria Bethânia gravaria com imensa garra. Em 1969 participou da trilha sonora de “Meu nome é Lampião”, em 1973 teve outra música gravada – “Se eu tivesse o meu mundo” (com Paulinho Guimarães) e em 1975, ao lado de Marília Medalha e Zé Keti, esteve na remontagem (fracassada) de “Opinião”. Problemas diversos fizeram com que nestes 17 anos sua carreira fosse interrompida – inclusive por causa do alcoolismo, em que pese algumas composições aconteceram, como “Geba e Pimenta” (gravada por Ali Toledo) e “Pisa no fulo” (que em 1957 ele próprio registrou).
A aproximação com Chico Buarque, numa viagem a Angola, fez com que o superstar se interessasse com, tentar fazer um elepê de João. A Polygram, a quem a proposta foi levada não se interessou, mas como Fagner entrou na jogada o disco está saindo agora pela CBS – numa produção esmerada, onde a participação de João do Vale quase fica eclipsada tal número de estrelas que com ele dividem o disco. Afora os arranjos e regências caprichados – especialmente de Zé Ramalho e José Briamonte – em cada faixa há destaques especiais: a abertura com “Na Asa do Vento”, sua parceria com Luiz Vieria, segue-se “Pé do Lajero”, parceria com José Cândido, onde Antônio Carlos Jobim divide o vocal da ecologia letra – emoldurado num belíssimo arranjo de João Donato, com flautas de Paulinho Jobim e Danilo Caymmi, mais o coral de Eliane, Ana e Bete Jobim. Amelinha divide “Estrela Miúda”, outra parceria de João com Luís Vieria; Fagner está em “Bom Vaqueiro” (parceria com Luís Guimarães); o histórico Jackson do Pandeiro não poderia dividir melhor faixa: “O Canto da Êma” (de João, Alvintino Cavalcanti e Ayres Vianna). Como Maria Bethânia não quis participar (o que não surpreende, conhecendo-se o mau caráter da antipática baiana) é o próprio Chico Buarque que divide com João a interpretação de “Carcará”. Chico fez arranjos e a regência de “Morena do Grotão”, enquanto Zé Ramalho participa de “Morceguinho” (O Rei da Natureza). Clara Nunes emoldura “Uricuri” (Segredo Setanejo) e “Fogo do Paraná” – parceria de João e Helena Gonzaga, coma sólida presença de Gonzaguinha, tem significado especial a nós: a musica fala do grande incêndio do Norte do Paraná, onde atingiu Zé Paraíba, que para lá foi “Cheio de esperança/levou a Muié/E seis barrigudinho/Pedro, Joça e Mané/Severina, Zefa e Toinho”, Nara Leão, com toda sua emoção e ternura, faz de “Pipira” um momento emocionante, suave, qnquanto “Pisa no Fulo” (parceria de João, Ernesto Pires/ Silveira Jr.) tem a nordestina presença de Alceu Valença.
Mas apenas o João do Vale, em solo, que encerrando o disco com “Minha História” (parceria com Raimundo Evangelista), dá o grande recado social, falando da migração do Nordeste, citando que hoje, mesmo sem ser doutor, pelos “ baiãozinhos que eu fiz/ ficam todos satisfeitos/ batem palma, pedem bis”. Entretanto, no verso final, fica a grande verdade: “Mas o negócio não é bem eu/ É Mane, Pedro e Romão/ Que também foram meus colegas/ E ficaram no sertão/ Não puderam estudar/ e nem sabem fazer baião”.
Um belo disco este de João do Vale. Há anos, gravou um elepê que poucos ouviram. Agora, graças a admiração que merece de tanta gente boa da MPB ganhou a chance de ser ouvido/ promovido na dimensão que merece.
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