Kubrick, um iluminado e inquietante cineasta
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 27 de dezembro de 1980
Como uma espécie de presente de Natal aos fãs do bom cinema - e se constituindo na última grande estréia de 1980, "O Iluminado/The Shining" (cine Astor), e mais uma oportunidade de se contemplar o múltiplo talento de Stanley Kubrick, 52 anos, 11 longa-metragens em 27 anos de atividades cinematográficas. O mais perfeccionista dos realizadores contemporâneos, desde a década de 60 radicado em Londres, Kubrick passa anos preparando cada um de seus filmes, num trabalho em que exige ampla liberdade e que só revela, mesmo aos executivos da Warner (que desde "Laranja Mecânica" (71) financia seus projetos), quando concluídos. Se "Clockwork Orange", do romance de Anthony Burguess, levou oito anos para chegar ao Brasil e Barry Lyndon" (1975), um dos mais belos filmes da década passada, foi injustiçado, este "The Shining" aqui estréia menos de cinco meses após ter assuntado milhões de espectadores nos EUA. Um filme de terror, mas sem os clichês do gênero. Um terror inteligente, psicológico, com o "toque de Kubrick", em nosso entender um dos mais criativos e importantes cineastas do cinema em todos os tempos, incapaz de se repetir, sempre dando um salto adiante e surpreendendo os que procuram (como nós) acompanhar a sua filmografia, desde seu primeiro longa-metragem, a chegar ao Brasil. "A Morte Parrou por Perto" (Killer's Kiss - 1955), contundente estudo da violência no mundo do box, aqui exibido em anônimo programa triplo no cine Curitiba, no inverno de 1958. Desde então, cada filme de Kubrick é aguardado com uma natural ansiedade, pois eles trazem muito a quem sabe apreciar o cinema de idéias e estética.
Muito já se publicou na imprensa mundial e nacional a propósito de "The Shining". A revista "Newsweek", em 26/5/80, por exemplo acentuou que "Kubrick seria o último Deus a queixar-se da perfeição. Já se tornou legendária sua obsessão tanto pela privacidade quanto pela cinematografia. Em 1961, quando fez "Lolita" resolveu mudar-se para a Inglaterra. Vive numa grande mansão nos subúrbios de Londres, em companhia da mulher, a pintora Christiane, e de três filhos. Desde 1968 não vai aos EUA. "Não tenho tido tempo", diz com uma lógica que desarma. "Estou constantemente envolvido com cinema. E quando não se gosta de voar, a viagem é tremendamente cansativa". Kubrick é famoso por seu medo de avião, um medo duplamente surpreendente, pois é brevetado como piloto. "Adoro aviões, mas não gosto de estar dentro deles", afirma. Depois que me dei conta dos aspectos inseguros de voar, eles me fizeram a cabeça". E a cabeça de Kubrick é diferente de qualquer outro cineasta. Ele tem sido acusado de ser frio e sem emoções, mas a verdade é que é um homem de sensibilidade muito forte que faz um esforço imenso para controlar as emoções. "Antigamente eu jogava xadrez doze horas por dia. Sentava-me diante do tabuleiro e de repente o coração estava aos pulos. A mão tremia quando pegava a peça para movimentá-la. Mas o xadrez ensina a se permanecer sentado tranqüilamente diante do tabuleiro, e a pensar se realmente aquilo é uma coisa boa ou se há algo melhor a fazer".
A visão da humanidade implícita em "Laranja Mecânica", em "2001 - Uma Odisséia no Espaço", em Barry Lyndon" e agora em "O Iluminado", parece tudo, menos algo cálido e promissor. Mas Kubrick declara que está sendo simplesmente "objetivo"..
Ele insiste em dizer que só se interessou por "O Iluminado" - do romance de Stephen Kane, o mesmo autor de "Carrie, A Estranha" (filmado em 1977, por Brian De Palma) como um exemplo engenhoso do gênero fantasmagórico. Submetido à maior pressão, entretanto admite implicações mais profundas no argumento. "Há algo de inerentemente errado com a personalidade humana. Ela tem um lado diabólico. Uma das coisas que os filmes de horror podem fazer é mostrar os arquetipos do inconsciente: podemos ver o lado escuro sem ter de enfrentá-lo diretamente. Ademais, o fantástico fala à nossa ânsia de imortalidade. Se se tem medo de fantasmas, tem-se de acreditar que o fantasma existe. E se fantasma existe, então a morte não pode ser o fim", diz Kubrick.
Mais do que qualquer outro diretor, Kubrick parece construir em seus filmes uma realidade alternativa, algo mais lógico e preciso do que o mundo real com seus desígnios escorregadios e perigosos sobressaltos do coração indefeso. Isso explica seu amor pelo lado técnico e formal da cinematografia. "Eiseinstein fazia isso com cortes", diz ele. "Max Ophuls fazia com movimento fluído. Chaplin fazia sem nada de especial. Eisenstein dá a impressão de ser só forma e nenhum conteúdo e pouca forma. Ninguém podia realizar um filme de maneira mais pedestre do que Chaplin. E ninguém podia prestar menos atenção ao argumento do que Eisenstein. "Alexandre Nevsky", é, no final das contas, uma historiazinha chinfrim; "Potenkim" é construído em torno de uma forte mensagem propagandística. Mas ambos são grandes cineastas".
Equívocos: Kubrick insiste em dizer que não evoluiu, que meramente se tornou consciente de mais coisas. Passei por "Glória Feita de Sangue" (Paths of Glory, 57) sem ter consciência de muitas coisas, que hoje vejo, foram equívocos. Quanto mais se aprende uma forma de arte, mais difícil ela se torna, porque criamos leis mais rígidas para nós mesmos. Será que Kubrick - aos 52 anos, insinuante, de fala macia mas nitidamente reservado - é feliz? "Há momentos em que me sinto feliz e é quando faço filmes", declara. E sou certamente infeliz, quando não faço filmes.
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A melhor notícia: a cópia de "O Iluminado", no Cine Astor, é a original, com legendas. A versão dublada, feita por exigência do próprio Kubrick, com direção de Nelson Pereira dos Santos, fica para uma reprise do filme. Ainda bem...
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