Medo de Amar (II)
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 09 de julho de 1992
"Não eu não sei se gosto ou se não gosto de sentir o que sinto e o que me atormenta e eu confesso que tremo desse sentimento que de repente chega e que me ataca e assim me faz perder-me e nem saber se esses carinhos são suaves ou velozes se o que escuto é o silêncio ou se ouço vozes"
(Suely Costa/Tite de Lemos, "Medo de amar nº2", 1978)
Saber contar estórias simples, de fácil empatia com o público, sempre foi um dos segredos que fizeram o sucesso do cinema americano. Se o chamado cinema de utilidade pública - representado pela abordagem de temas polêmicos e políticos, baseado em fatos reais, constitui uma das funções mais importantes do cinema de nossos cinemas e o filme-de-arte - cada vez mais sofisticado (e geralmente hermético, destinado a faixas reduzidas de público) - e do que o belíssimo "A Última Tempestade" (Cine Ritz) é um belo exemplo, se constituem em gêneros/faixas que ainda fazem o cinema ter a sua maior importância, não se pode desprezar, preconceituosamente, o cinema de sentimentos, o romantismo, as estórias com início, meio e fim. Afinal, 90% da produção cinematográfica em um século sempre buscou oferecer a gerações que se sucederam a arte de contar estórias - dos mais diferentes gêneros.
"Frankie & Johnny" (Cine Lido I) é romântico, com sentimentos e empatia universal, simples como os personagens desta estória de uma garçonete, Frankie (Michelle Pfeifer) e de um cozinheiro, Johnny (Al Pacino), ex-presidiário (por falsificar cheques), passou 18 meses numa penitenciária, onde descobriu sua vocação pela culinária e ali se tornou querido pela excelência dos pratos que preparava para seus colegas. O filme começa com imagens paralelas: Frankie, 36 anos, chegando na pequena cidade de Altoona, Pensylvania, para o batizado de um sobrinho, revendo parentes, mas ansiosa em retornar à Nova York onde trabalha no Apollo Café, lanchonete pertencente a um imigrante grego simpático, Nick (Hector Elizondo), localizado na 23ª St./9ª Avenue. Ali, em seu primeiro dia de liberdade, chega Johnny procurando emprego como cozinheiro. Apesar de ex-condenado, Nick resolve lhe dar um emprego.
Em breves imagens, num cenário que se constitui no espaço central do filme em suas origens teatrais - da peça de Terrence Mc Nally (que começa a ser ensaiada com direção de Bibi Ferreira, com Cristiane Oliveira e Fábio Assunção, para estréia em setembro no Rio de Janeiro), o espectador conhece o micro-universo de empregados e clientes: o proprietário Nick, as garçonetes colegas de Frankie, os cozinheiros-chefes e seus auxiliares - num clima que, pelo clima, pode lembrar - mas de outra forma - outra peça cuja ação também se passava na cozinha de um restaurante. Johnny sente-se atraído por Frankie, que, de princípio resiste ao seu assédio - apesar da solidão amorosa, após um doloroso romance com um homem casado, há três anos passados. Prefere, ao final de cada dia de trabalho, "comer uma pizza, alugar um vídeo" e, da janela de seu apartamento observar a vida de alguns vizinhos - numa referência que revela a primeira (das várias) citação (es) do diretor Garra Marshall ao cinema - no caso "A Janela Indiscreta" (Real Window), que o mestre Alfred Hitchcok (1889-1980) realizou a 33 anos passados. Uma vida solitária, a qual poucos tem acesso, entre os quais o casal de vizinhos homossexuais, Tim (Nathan Lane) - aliás, um dos personagens mais cativantes (além de mostrar um ator excelente) e o garotão Bobby (Sean O'Bryan).
Johnny, em sua solidão e carência afetiva, em um rápido e hilário - envolvimento sexual com outra garçonete, Cora (Kate Nelligan), mas seu objetivo é se aproximar de Frankie. A insistência, a sinceridade e a solidão mútua, finalmente rompem o seu isolamento e o amor acontece - após uma festa em que um funcionário da lanchonete, o crioulo Jorge (Fernando Lopez) consegue realizar - seu sonho: vender para Hollywood um roteiro. Nova referência ao cinema, desta vez a Spike Lee - por sinal, rapidamente visto numa transmissão do programa "Jack Carson Show", ligada no apartamento de Johnny.
Um relacionamento de amor, entre duas pessoas carentes, buscando afeto, poderia ter um encaminhamento linear - mas então o filme ficaria num curta-metragem. Então, sente-se todo um aprofundamento das relações humanas, do amor (e do medo de amar e entrega) de Frankie - lembrando os personagens igualmente solitários de "Loucos de Paixão" (White Palace) - Norman Jean (Susan Sarandon), também uma garçonete de lanchonete (só que num envolvimento com um yuppie), a operária Iris (do filme "Stanley & Iris", de Martin Ritt) com seu colega de trabalho, conforme lembramos em nosso comentário de ontem. Resumir a estória de um filme não é finalidade de um filme-review e, assim, não justifica que se prossiga na narração sintética da peça de Terence McNally, originalmente intitulada "Frankie and Johnny in the Clair De Lune", por ele próprio adaptado para o cinema. Aliás, uma adaptação primorosa, em que extrapolou os cenários confinados do teatro, libertando os personagens nas ruas de Nova York, em seus modestos apartamentos, na Port Autority (a rodoviária central da Big Apple) e, especialmente em um mercado de flores, onde admirável fotografia de Dante Spinetti capta uma das mais belas cenas do filme: o primeiro beijo de Frankie e Johnny quando um florista abre uma porta de aço de um depósito de flores maravilhosas.
Gerry Marshall, que em "Uma Linda Mulher" (A Pretty Woman, 90), havia mostrado requinte visual e sensibilidade no desenvolvimento dos personagens, aqui mergulha mais profundamente - e para isso por certo, a colaboração com o dramaturgo-roteirista McNally deve ter sido fundamental. Os diálogos são rápidos, ágeis, irônicos, muitas vezes, os personagens bem definidos e as interpretações perfeitas.
Al Pacino, nova-iorquino, 52 anos completados no último dia 25 de abril, e hoje um dos melhores atores do cinema em sua criação do cozinheiro Johnny é perfeito. Michelle Pfeiffer, californiana, 34 anos completados dia 29 de abril, é uma atriz que se supera a cada filme e depois de vê-la como a desglamorizada Frankie, 36 anos, numa personagem sem qualquer sex-appel, torna-se interessante compará-la com uma personagem ficcional tão produzida como a mulher-gato em "O retorno de Batman" (Cines São João/Bristol). Sem dúvida, um giro de 360º para qualquer intérprete. No elenco de suporte, com alguns nomes vindos do teatro, também interpretações perfeitas.
Apesar da referência-título da mais conhecida obra do piano do francês Claude Debussy (1862-1918), "Clair de Lune" composta há um século - e que emoldura sonoramente o reencontro do casal na tocante seqüência de encerramento - as referências verbais são de uma música de Terence Trebt D'Arbie, justamente chamada "Frankie & Johnny", que apesar de popular nos EUA, no Brasil permanece praticamente inédita, já que não foi incluída nos dois discos de Terence aqui lançados. Aliás, a trilha sonora do filme é outro ponto alto: Marvin Healish, um talento que os brasileiros passaram a admirar desde que soube, com imensa felicidade, reutilizar os temas de Scott Joplim (1868-1917) no delicioso "Um Golpe de Mestre" (The Sting, 73, de Geirge Rey Hill), desenvolveu uma sound track perfeita, acrescentando aos seus próprios temas (a começar pelo main tittle central, um dos mais belos do ano), rap ("Slang Yo Thang", com The Rhythm), "Until You Let Go" (com o duo Peter Beckertt e Jeanette Clinger), a canção "It Must Be Love" (na voz de Rickie Lee Jones) e mesmo o flashback dançante "What a Fool Believe" 1978, êxito dos Dobbie Brothers, entre outros. Normalmente uma montagem mista em termos musicais, como vem acontecendo na maioria dos filmes contemporâneos, apresentam resultados lamentáveis, mas no caso de "Frankie & Johnny" (CD com a trilha sonora, recém-lançado pela Curt/Estúdio Eldorado, Cr$ 60.000,00) funcionou. E isto se deve ao inegável talento de Hamlisch, apesar de um crítico mal humorado, como Carlos Calado ("Folha de São Paulo", 06/07/92), ter, injustamente feito restrições a trilha. "Frankie & Johnny" é um filme-emoção, assumidamente romântico, mas com a empatia de personagens cativantes - e, sobretudo, realizada com extrema competência. Daquelas obras que atingem diferentes faixas de público: do mais simples, em busca simplesmente de um entretenimento agradável, até quem o veja com um olhar de profundidade. Sem dúvida, Bibi Ferreira, com seus 50 anos de vida teatral, competência como uma das melhores atrizes e diretoras do teatro brasileiro, terá que usar todo o seu talento para na encenação teatral, fazer um espetáculo que ao menos empate com este filme de primeira categoria - seguramente entre os 10 melhores do ano em nossa listagem, a ser divulgada no primeiro domingo de 1993.
Nota
Por um engano de composição, na coluna de ontem, a frase "um relacionamento inicialmente apenas de convivência entre um próspero yuppie e uma linda prostituta... "saiu com uma palavra que alterou o sentido. O correto seria "um relacionamento de conveniência" (já que na estória, no início, Lewis/Richard Gere e Vivian/Julia Roberts, estabelecem apenas um negócio comercial). Repetimos, o óbvio: na agilidade que o jornal exige para sua elaboração - tanto na redação, como na montagem das páginas, são comuns pequenos enganos. Não só na imprensa brasileira, mas mesmo nos maiores jornais (e revistas) do mundo. Entretanto, como existem leitores que buscam apenas eventuais falhas técnicas, sempre que possível aqui faremos as correções necessárias.
LEGENDA FOTO - "Frankie & Johnny": um filme para várias platéias, numa transposição perfeita de uma peça de teatro que Bibi Ferreira vai dirigir no Brasil. Em exibição no Lido I.
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