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Mesmo sem mercado, os curtas-metragens mostram qualidade

Brasília - Amir Labaki, crítico da "Folha de São Paulo", formado em cinema pela ECA-USP, abordará na terça-feira ao encerrar o curso "Aspectos da Linguagem Cinematográfica", um tema que se torna cada vez mais fascinante: o crescimento - em quantidade e qualidade - do curta-metragem no Brasil. Apesar de totalmente desprotegido - a lei que obrigava os cinemas comerciais a exibir curtas deixou de existir e mesmo salas teoricamente voltadas a programação cultural (como as mantidas pela Fucucu em Curitiba) passaram a hostilizar os curtas, este tipo de produção continua a crescer. Tendo acompanhado este ano, entre fevereiro/maio, a três dos mais importantes festivais internacionais destinados a curtas-metragens - realizados em Clermont-Ferrand, na França; Oberhausen, na Alemanha e Bolonha, na Itália - Labaki trouxe informações mostrando a boa performance dos 25 curtas de realizadores brasileiros levados a estas mostras conquistaram. Nos últimos anos, já se tornou norma dizer que a qualidade dos curtas em competição nos festivais suplanta, em muitos casos, dos longa-metragens. Infelizmente, apesar da qualidade da produção, raros destes filmes em que jovens e idealistas realizadores empenham-se com todo entusiasmo chegam às platéias fora dos festivais e circuitos especiais. Para esta 24a. edição do Festival de Cinema de Brasília foram inscritos 30 curtas, número que, para o 17o. Festival de Gramado, em agosto, aumentou para 40 - inclusive com "Os desertos dias", do catarina-curitibano Fernando Severo, que sonha em repetir o sucesso que teve em 1988, quando seu "O mundo perdido de Kozak" conquistou 10 prêmios em festivais nacionais. Em Salvador, em setembro, na Jornada de Cinema que o bravo Guido Araújo volta a promover após dois anos de interrupção, o confronto dos curtas deverá ser ainda maior - já que trabalhos em fase de conclusão (como "A flor", filme de animação das Irmãs Wagner, de Curitiba quarto curta dos projetos financiados pela Secretaria da Cultura) deverão também competir. Os curtas em Brasília - Embora seja impossível analisar já no início do festival a qualidade dos curtas selecionados para este festival - que estarão sendo projetados até amanhã - pelas informações que se tem aqui, de parte dos realizadores, nota-se que, contrariando as mais pessimistas previsões - após o debacle que representou o fim da Embrafilme), em março do ano passado - os projetos que estavam em andamento foram concluídos - e mesmo alguns iniciados. Em São Paulo, especialmente, graças ao apoio das Secretarias da Cultura do Estado e Município (ao contrário do que acontece em Curitiba) foram liberados recursos que possibilitaram um reaquecimento na produção dos curtas - com algumas surpresas importantes (em Curitiba, só em fins de maio - e por determinação pessoal do prefeito Jaime Lerner - a Fucucu decidiu ajudar os nossos realizadores, liberando recursos para que Fernanda Morini, Severo e as Irmãs Wagner concluíssem seus filmes). Curtas São Paulo Vários aspectos de São Paulo - a cidade, seus personagens, sua cultura - estão flagrados em curtas ali produzidos nos últimos meses. Francisco Cesar Filho, por exemplo, em "Rota ABC", faz uma homenagem a um dos mais belos longa-metragem dos anos 60 ("São Paulo S/A", 65 de Luís Sérgio Person) que vaticinava no final dos anos 50 as margens da Via Anchieta como futuro do Brasil - uma referência à instalação do parque industrial automobilístico no ABC. Com uma paisagem composta por trens, concreto e fumaça, "Rota ABC" mostra a resposta dos filhos daquela elite do operariado brasileiro, trinta anos depois da previsão vislumbrada por Person. O roteiro aborda a conquista de espaços para lazer, a herança das lutas operárias (magnificamente documentadas no filme "ABC de greve", de Leon Hirzman, exibido hors-concours na noite de quarta-feira), com a participação da banda punk "Garotos podres" interpretando a música "Subúrbio operário" (André Abujamra, ex-Mulheres Negras). Já a diretora paulista Tagá Amaral ("Poema: Cidade", "Queremos as ondas no ar"), em seu novo trabalho, "Viver a vida", aborda a história do cotidiano de Clemson (Jefferson Gerônijo, um office-boy esperto que fura filas, curte música e dá trambiques, apaixonado por fliperama. Outro cineasta paulista, Mirella Martineli optou em "O inventor (que será exibido hoje à noite), por prestigiar um dos nomes mais criativos das artes plásticas brasileiras, Guto Lacaz (que há alguns meses fez uma exposição no Centro Cultural do Portão). Seu documentário - com atuações de atores convidados como o garoto bombril Carlos Moreno - é uma comédia plástica que apresenta objetos do cotidiano, pinturas e instalações do artista multimídia paulistano. Tido como um "artista das mil idéias", Lacaz costuma praticar performances com as artes, como colocar rádios para pescar, latas de óleo para procurar saladas e ovos para fritar no ferro elétrico. Neste "O inventor", Lacaz surge como um experimentalista, numa linha similar às alterações de Andy Warhol. Tata Amaral, além de diretora de "Viver a vida", é a produtora executiva de "Moleque de rua" (o nobre pacto), outro "filme para ser visto com os ouvidos". O filme é um musical-documentário sobre a banda "Moleque de rua" - formada por moleques e marmanjos que têm as ruas de São Paulo como seu cenário natural. Neste curta - também programado para hoje à noite antecipando ao longa mais intelectual do festival ( "O corpo", de José Antônio Garcia, baseado em conto de Clarice Lispector) - é mostrada a trajetória do grupo "Moleques de rua, há oito anos inventando seus instrumentos, "de onde são extraídas sonoridades sempre permeadas pelo caos da megalópolis-São Paulo - num diálogo permanente com a crise urbana" como diz o diretor do filme, Márcio Ferrari, 30 anos, jornalista, cinco anos (75/80) de experimentações em super 8 e que em 1983 concluiu seu primeiro curta ("Hot dog", 16 milímetros). O mundo gay Ao contrário do ano passado, quando tiveram marcante participação no Festival de Brasília - os gaúchos este ano Tadao Milai e "Au revoir Shirley", o terceiro curta programado para a noite de hoje no Cine Brasília. Dos curtas em competição, nos parece um dos mais interessantes: o diretor Gilberto Perin e a roteirista Alice Urbim partiram de uma notícia do jornal. [Shirley] é um travesti que sonha em viajar para a Europa em buscas de melhores condições de vida. Como os travestis da notícia que inspirou o filme, Shirley depara-se com uma realidade hostil aos seus sonhos e esperanças. Ao desembarcar em Paris, ela é obrigada a retornar ao Brasil. Para escolher o elenco, foram testados dezenas de atores transformistas (e não simples travestis), sendo selecionado para o papel central Rebecca McDonald (Ronaldo Peixoto, 22 anos) - que se encontra em Brasília desde terça-feira. Há dois anos, um filme sobre o mundo dos gays, com a também transformista Laura de Vison - uma espécie de "Divino" (o famoso travesti-ator americano, morto em março de 1986, logo após a estréia do "Hairspray"), fez sensação em suas performances. Independência segundo Batista Entre todos os participantes na categoria de curtas, há um nome consagrado: João Batista de Andrade, que há 7 anos tenta levar à tela a vida de seu amigo Vladimir Herzog - numa produção adiada inúmeras vezes (a última devido ao Plano Collor), mostra hoje à noite, "Independência", que inicia com uma tomada aérea do mar e da exuberante vegetação tropical. Neste curta com fotografia do competente - Chico Botelho (também diretor: "Cidade oculta", "Janete"), montagem de Walter Rogério (aqui premiado em 90, com seu longa de estréia "O beijo", ainda inédito comercialmente) e música de Hermelino Nader, o diretor de "O homem que virou suco" relata os fatos históricos e os aspectos conjunturais e econômicos compreendidos entre a vinda da família real para o Brasil até o ano da proclamação da Independência. Não há diálogos nem personagens. Toda a narração é conduzida a partir de obras de pintores do período, como Rugendas e Debret - numa pesquisa iconográfica de Luciano Petrocchi e histórica de Maria Cristina Castilho. A inclusão histórica, inclui imagens tiradas de gravuras da Igreja barroca de São Francisco e os principais fatos que contextualizam a época da Independência do Brasil como a Queda da Bastilha é a Independência dos Estados Unidos. As imagens são conduzidas ouvindo-se ao fundo as músicas do padre José Maurício ("Te Deum", Caetano Doniseti e, no final, o Hino da Independência. No mínimo, um curta cultural, de visão obrigatória nas escolas - e comprova que João Batista, figura admirável de nossa cinematografia, mesmo na adversidade da produção (sua esposa, Assunção Hernandez, é uma das mais competentes executivas do cinema, São Paulo) não fica parado. E, mais ano, menos ano, se "Vlado" - tão aguardado - chegará em Brasília ou Gramado. LEGENDA FOTO - João Batista de Andrade: "Independência".
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
07/07/1991

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