A Música em Pessoa
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 01 de fevereiro de 1986
"Eu sou trezentos, sou trezentos e cinqüenta" - diz Mário de Andrade, num verso célebre. Fernando Pessoa foi mais contido, em matéria de cifra. Em compensação criou uma heteronímia militante e triunfante, caso talvez único na história das letras universais. Hoje em dia, a presença do autor de "Mensagem" se mede, não em escala nacional, ou continental, mas em termos ecumênicos. Fernando Pessoa é considerado, pela melhor crítica mundial, um dos maiores poetas do século." (Hélio Pellegrino)
"A poesia é a emoção expressa em ritmo através do pensamento, como a música é essa mesma expressão, mas direta, sem o intermédio da idéia. Musicar um poema é acentuar-lhe a emoção, reforçando-lhe o ritmo." (Fernando Pessoa, 1913)
"Quem bate à minha porta tão insistentemente
Saberá que está morta a alma que em mim sente?"
"Dos encantos dos pensamentos
dos santos lentos dos recantos
dos bentos cantos dos conventos...
Prantos de intentos, lentos, tantos
que encantam os atentos ventos."
"Vou vendo o que o rio faz
quando o rio não faz nada
Vejo os rastros que ele traz
Numa seqüência arrastada
Do que ficou para trás."
"O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente."
Nesta quadra de "Autopsicolografia", o poeta português Fernando Pessoa procurou definir-se e expressar a "doutrina do fingimento", que pôs em prática de modo especial, "dividindo-se" em estilos e personalidades diversas, todos considerados de alto valor literário.
E de sua imensa obra, esta quadra - como o seu clássico Poema em Linha Reta - são obras das mais conhecidas, fazendo-o um poeta da maior popularidade da língua portuguesa, o mais importante do período modernista e artista da dimensão de Camões.
Os cinqüenta anos da morte de Fernando Antônio Nogueira Pessoa (Lisboa, 13 de junho de 1988 - 30 de novembro de 1935) motivaram várias comemorações em todo o mundo. Reedições de sua obra, análises críticas, a montagem de espetáculos com seus textos poéticos - como o que está sendo apresentado há duas semanas no Rio de Janeiro, por Walmor Chagas e Ítalo Rossi. Mas uma homenagem muito especial foi a idealizada por duas jovens produtoras e bancadas pela Sigla/ Som Livre: "A Música em Pessoa". Um projeto que teve apoio da Fundação Calouste Gulbenkian e Fundação Roberto Marinho resultou na produção de um álbum fonográfico dos mais preciosos, nos quais nomes da maior expressão - Tom Jobim, Milton Nascimento, Francis Hime, Dori Caymmi, Arrigo Barnabé - musicaram poemas de Fernando Pessoa.
Produção de Elisa Byington e Olívia Hime, desenvolvida com extremo carinho, se desenvolveu ao longo de vários meses só sendo lançado nos últimos dias de 1985. Infelizmente, como ocorre com tantas produções culturais fora de série, não obteve a divulgação merecida e mesmo nas lojas é difícil de ser encontrado. Mas vale insistir, pois se trata de uma produção magnífica, destinada a permanecer como documento sonoro da lírica de um dos gênios literários do mundo.
O Tejo é mais belo que o rio
que corre pela minha aldeia
Mas o Tejo não é mais belo
que o rio que corre pela minha aldeia.
O piano, a voz e a música de Tom Jobim, sobre "O Rio da Minha Aldeia", poema de Alberto Caieiro - um dos heterônimos de Pessoa - abre o lado A de "A Música em Pessoa" que tem a qualidade de fazer com que se absorva a sua poética de uma forma extremamente suave. Nana Caymmi, na faixa seguinte, com sua voz única, canta "Segue o Teu Destino", poema de Ricardo Reis musicado por Sueli Costa - construção lírica que não poderia ter melhor estrutura para a sua voz perfeita.
Segue o teu destino
Rega as tuas plantas
Ama as tuas rosas
O resto é a sombra
De árvores alheias
Francisco e Olívia Hime interpretam "Glosa", musicado por Francisco do poema de Pessoa, que começa com uma indagação:
Quem me roubou a minha dor antiga
e só a vida me deixou por dor?
Ritchie, com sensibilidade, interpreta "Meantime", poema da fase inglesa de Pessoa, enquanto a portuguesa Eugenia Mello e Castro diz a seguir "Emissário de um Rei Desconhecido", musicado por Milton Nascimento. Encerrando o lado A do disco, o ator Marco Nanini (cuja bela e clara voz já havia marcado uma das faixas da trilha de "O Corsário do Rei", de Chico Buarque/ Edu Lobo), interpretando "Passagem das Horas", sobre um tema musical de Hime, dá, possivelmente a mais profunda passagem dramática nesta gravação. Dois outros momentos declamados sobre temas musicais de grande emoção são "O Menino da Sua Mãe", com Marília Pera sobre música de Francis e Jô Soares, ao som da música de Nando Carneiro, encerrando a gravação com o longo "Cruzou por Mim, Veio ter Comigo, numa Rua de Baixa" - um dos mais conhecidos poemas que Pessoa escreveu com o heterônimo de Álvaro de Campos.
O paranaense Arrigo Barnabé musicou "Quem Bate à Minha Porta?", interpretado por Vânia Bastos; Arrigo é também o intérprete de "Saudade Dada"; Dori Caymmi musicou e interpreta "Na Ribeira deste Rio", enquanto a música e voz de Edu Lobo tornam lindíssimo "Meus Pensamentos de Mágoa".
Bóiam leves desatentos,
Meus pensamentos de mágoa,
Como, no sono dos ventos,
As algas, cabelos lentos
De corpo morto das águas.
A voz de Olívia Byington - uma das mais perfeitas - emoldura o fragmento 145 do "Livro do Desassossego" de Bernardo Soares: Tom Jobim que abre o disco com a poema da aldeia, fala "Do vale à montanha/ Da montanha ao monte" no "Cavaleiro Monge":
Por casas, por prados
Por quina e por fonte
Uma grande orquestra de cordas, bons solistas - como o flautista Celso Woltzenlogel em "Quem Bate à Minha Porta" ou ao celista Jaquinho Morelembaum em "Cavaleiro Monge", os arranjos especiais a cada faixa - fazem com que toda esta produção tenha um requinte, um capricho único. Elisa Byington e Olívia Hime realizaram um trabalho preciso, com um fino acabamento - através da capa de Paulo Gomes Garcez e registrando nesse álbum, momentos imensos da obra de Pessoa.
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