Os cantores nativistas ganham seus LPs solos
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 01 de fevereiro de 1986
O recorde aconteceu em dezembro: menos de 10 dias após a 15ª edição da Califórnia da Canção Nativista, em Uruguaiana, o produtor Ayrton dos Anjos - o mais ativo recordman do Sul - colocava nas lojas de Porto Alegre e outras cidades o lp Sigla/RBS, com as 12 finalistas. Pena que, passado um mês, a divulgação da Sigla ainda não tenha recebido este álbum-documento para promovê-lo no Paraná onde é grande a colônia gaúcha. Os festivais nativistas do Rio Grande do Sul têm sido cuidadosamente registrados em Lps que cada vez encontram maior público. Um exemplo que, insistimos, deveria ser seguido em outros Estados - especialmente o Paraná - nos quais os festivais, mal organizados, politicamente explorados por demagogos (vide o exemplo de Pato Branco), acontecem sem que reste qualquer documentação.
O crescimento dos festivais nativistas gaúchos se reflete também na projeção que os seus intérpretes vêm obtendo, sendo destaque nas programações de rádios, valorizados no "Galpão Crioulo" da RBS e, especialmente, ganhando seus discos-solos. Um pacote de novidades mostra a valorização merecida dos bons intérpretes - que nestes últimos 10 anos têm se destacado nos múltiplos eventos nativistas.
Passarinho (César Scott, Uruguaiana, 1943) é um dos cantores de mais bela voz do RS. Moreno, bigodes e cavanhaque, lembra fisicamente o nosso Lápis (Palmilor Rodrigues Ferreira, 1943-1979) e já ganhou um sem-número de festivais - não só a Califórnia mas também em outras cidades. Há 4 anos, Ayrton dos Anjos fez, pela Polygram, seu primeiro LP. Agora, na mesma gravadora, mas numa descuidada produção de Francisco Castilho (não há encarte com as letras das canções, os músicos que o acompanham não são identificados), Passarinho gravou um novo lp ("Solito") - que até na capa traz o seu nome errado. De qualquer forma, isto não impede a beleza das músicas - algumas como "Guri" (Júlio Machado/João Machado), finalista do recente Seara da Canção Nativista, em Carazinho - quando, pudemos sentir a comunição do cantor com o público. Passarinho diz com emoção identificadas ao espírito do gaúcho, como a belíssima "Prenda Minha" de Telmo de Lima Freitas (para nós, o melhor compositor daquele Estado), "Avô Campeiro" (Ubirajara Constante), "Bem Querença", esta da dupla João e Júlio Machado, autores também de várias outras faixas deste belo e emotivo Lp, de um cantor que merece reconhecimento nacional.
Eraci Rocha é outro grande talento do Rio Grande do Sul. Presente em quase todos os discos dos festivais nativistas, só agora ganha o seu primeiro lp ("Raça", Chantecler), gravado na Isaec, entre agosto e setembro/85, em cuidadosa produção de Paulo Deniz - diretor da rádio Guaíba, e entusiasta defensor do movimento nativista, com assessoria de seu filho, Paulinho e da bela Janine Rocha Fraga, esta, aliás, hoje a ativíssima produtora da Continental/ Chantecler no Sul.
Apesar do forte deste Lp se concentrar em canções que Eraci classificou em festivais nativistas - como "Pilão" (Ewerton Ferreira/ José Hilário Retamozo), uma das favoritas no II Musicanto, em Santa Rosa (outubro/84) - há três inéditas: a emocionante "Tropeiro" de César Forman e Sérgio Napp (parceiro também de Fernando Cardoso em "Morada"); "Olhos de Mel" (Deniz Jr./ Thomas Barcellos) e, num toque latino, "Pelas Veias Abertas" do guitarrista Lucio Yanel (já com um lp solo, também pela Chantecler) e Nilo Brun. Mas o grande momento deste disco é "João Mulato Carreteiro" (Talo Pereyra/ Gaspar Machado), canto extremamente social e emotivo.
Dante Ledesma é, a exemplo de Talo Pereyra, Lucio Yanel e tantos outros argentinos e uruguaios, um compositor e intérprete radicado no Rio Grande do Sul. A integração destes artistas do Cone Sul têm sido tão grande que eles vêm, inclusive, participando de festivais nativistas - o que, aliás, foi motivo de polêmica na última Califórnia. Dante Ledesma acaba de fazer um lp solo ("O Grito dos Livres", Chantecler), no qual reúne ao fonograma que dá título ao lp (composição de José Fernando Gonzales), composições próprias, obviamente de raízes políticas, como "Memórias Del Che" (antecedido do poema de Guevara), "Pampa do Amanhã" - ao lado de outros standards latino-americanos, como "El Condor Pasa", "Juana Azurduy" (Ariel Ramirez/ Felix Luna), o "Poema de Amor" (Juan Manuel Serrat). Produção de Janine Rocha Fraga, o disco de Dante Ledesma tem, reconheça-se um estilo old fashioned em termos de canto latino - especialmente pela irritante forma de incluir poemas declamados. Mas não deixa de se constituir num registro da obra de um artista de popularidade, presença forte nos eventos musicais gaúchos.
Dorotéo Fagundes é filho de um dos mais populares nativistas do Rio Grande do Sul: o "Bagre", irmão de Neco Fagundes - produtor do "Galpão Crioulo" na TV-RBS e editor de tradicionalismo da "Zero Hora". Jovem, bem apessoado e bonita voz, Dorotéo tem sido um dos talentos emergentes nos últimos festivais nativistas, interpretando boas músicas. E agora, chegando a um elepê solo (Polygram), este jovem gaúcho de Alegrete, mistura chamamés ("Barranca e Fronteira", "De Marcha Batida"), milongas ("Canto e Lamento do Meu Sonho", "Parceira da Saudade", "Segredos do Meu Cambicho"), valsas ("Canção da Estrada, "Cantiga") a dois dispensáveis - (e até irritantes) poemas - pois a forma da declamação quebra, na maioria das vezes, o ritmo das gravações. A maioria das composições é do próprio Dorotéo, mas, com sensibilidade, também inclui Telmo de Lima Freitas ("De Marcha Batida"). Bons músicos participaram das gravações - como Luís Carlos Borges na guitarra, Glênio Fagundes e Yanel nos violões, o ótimo Plauto Cruz na flauta, além dos vocais de Bagre e Neto Fagundes.
Edgard de Souza perde-se em seu lp "O Tropeiro" (Chantecler) pela falta de uma melhor seleção. Buscando desde o humor mais apelativo - "A Bolacha da Vizinha" (Fabricante de Bolacha, de Zé da Praia/ Hércules) - na mesma linha do "A Boutique Dela" - até cansativas e apelativas declamações religiosas (preces a N.S. Aparecida sobre tema de Gounod; e a São Francisco), fica num lp indefinido. Apesar da bonita voz e muita comunicação, Edgard desperdiçou a chance de fazer um bom lp, mas que, de qualquer forma, deve vender bastante. A falta de critérios no repertório, o faz misturar desde um poema humorístico de Dias Jr. ("Repartindo Um Boi") a um tema nordestino de Gordurinha ("Poeira do Norte").
Mary Terezinha, ex-musa e companheira de Teixeirinha (Victor Mateus Teixeira, 1926-1985), acordeonista, cantora e compositora, reapareceu nos últimos 2 anos nas manchetes da "Zero Hora" e outras publicações do Rio Grande so Sul: sua separação do autor de "Coração de Luto" (uma das possíveis causas do enfarte que o compositor sofreu em 1983) e sua posterior ligação com o astrólogo Ivan Trilha a colocaram em uma curiosa popularidade. Dividindo-se entre os Estados Unidos e Porto Alegre, Mary Terezinha é hoje contratada da Polygram, que lança seu novo lp, no qual o marido Trilha aparece como versionista ("A Rainha", de José Alfredo Gimenes) e mesmo parceiro em outras faixas ("Arrependimento", "Meu Destino", "Tempo Perdido"), numa prova de que o casal quer faturar unido. Mary Terezinha é, obviamente, o inverso de tudo o que se entende por música nativista: seu estilo lacrimogênico, pseudamente dramático, a faz estar muito mais para a linha rurbana. Não pode, entretanto, ser ignorada em sua popularidade.
Galpão Crioulo III - disco "pau-de-sebo", reunindo diferentes intérpretes, esta terceira produção de Ayrton dos Anjos/ Dárcio da Silva Castro, reúne desde nomes da maior popularidade - como os acordeonistas Renato Borghetti ("Valsa da Coroa"), Gaúcho da Fronteira ("Churrasqueando Lá em Casa"), Berenice Azambuja ("Achando que a Vida é Bela"), o excelente grupo vocal Canto Livre ("Baile do Candeeiro") até artistas de popularidade mais restrita como Os Garotos de Ouro, os 3 Xirus e o grupo Impacto. O folclorista Antônio Augusto Fagundes narra um causo ("A Capa da Gaita") e uma presença muito agradável é de Leonardo em "Quebra-Queixo". Um disco alegre, equilibrado e com a catagoria que caracteriza as produções de Ayrton dos Anjos - o bom Patinete.
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