Nora Ney faz anos e dá um presente, a sua voz
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 20 de março de 1988
Zezé Gonzaga, Elizeth Cardoso, Marisa Gata Mansa, Claudete Soares! Quantas vozes femininas maravilhosas são criminosamente sonegadas do público devido a insensibilidade do mercado fonográfico idiotizado por regras cruéis em termos comerciais. Cantoras maravilhosas, que poderiam regularmente fazer novos discos são esquecidas precocemente - ao contrário do que acontece nos EUA ou na Europa, onde as grandes vozes têm seus registros preservados até o fim de suas vidas. Uma prova de quanto tempo se perde com bobagens roqueiras é ouvir a esplêndida Nora Ney (Iracema de Souza Ferreira), que, em tão boa hora, retorna num elepê belíssimo ("Meu Cantar é Tempestade de Saudade", 3M), que se destaca como um bálsamo sonoro entre tanta mediocridade.
Aos 66 anos completados neste domingo, 20 de março, esta cantora que exprime emoção e paixão dá um presente ao público acima de 40 anos que aprendeu a ouvi-la desde os anos 50. Com uma formação jazzística - entre 1948/49 freqüentava o fã-clube Sinatra-Farney, que reunia amigos e admiradores de Dick Farney (1921-1987), estreou no programa de José Mauro, "Fantasia Musical", da Rádio Tupi, cantando músicas estrangeiras com o pseudônimo de Nora Ney. Quando Araci de Almeida entrou em férias, Nora passou a substituí-la no quadro "Viva o Samba", do programa "Rádio Seqüência G-3", de Haroldo Barbosa, que foi um dos responsáveis para que abandonasse o repertório em inglês. Com sua pronúncia carregada de erres, mas com ritmo e afinação, criava um novo estilo de interpretação para os sambas-canções da época em pouco tempo se destacava no rádio, nas boates e em discos - com clássicos como "Menino Grande" (Antônio Maria), "Quanto Tempo Faz" (do parnanguara Paulo Soledade e do pernambucano Fernando Lobo) e, especialmente, com seus maiores êxitos - "Ninguém Me Ama" (Maria/Lobo), "De Cigarro em Cigarro" (Luís Bonfá), "É Tão Gostoso seu Moço" (Mário Lago/Chocolate), "Aves Daninhas" (Lupicínio Rodrigues), "Se eu Morresse Amanhã" (Antônio Maria), "Só Louco" (Caymmi), "Vai Mesmo" (Ataulfo Alves), entre tantos clássicos.
Casada com o também cantor Jorge Goulart (João Neves Bastos, RJ, 6/1/1926), o casal fez várias excursões ao Exterior, inclusive a África, Oriente Médio, URSS e China Continental (comunistas, sempre tiveram uma posição das mais dignas e corajosas mesmo sofrendo perseguições). Nos últimos 15 anos, o casal esteve esquecido. Resistiu por algum tempo em Belo Horizonte (onde montaram uma casa noturna) e, há algum tempo, Jorge teve que sofrer delicada intervenção cirúrgica que o afastou definitivamente da vida musical.
Nora Ney, entretanto, continua soberba como mostra neste elepê produzido por Moacyr Machado, na qual resiste inclusive a um repertório comercial, que inclui os top-makers Michael Sullivan/Paulo Massadas ("Por Incrível que Pareça") e autores bregas como Agnaldo Timóteo ("Deixe a Chave") e Gilliard ("Sem Medo de Amar"). Ela é estupenda e além de dignificar estes autores menores, eleva as culminâncias musicais à altura de sua competência como a belíssima "Caçadas" (Maurício Tapajós/Paulo Cesar Pinheiro), o sambista Gracia do Salgueiro ("Tempestade da Saudade") e homenageando Noel Rosa ("Último Desejo") e Lupicínio ("Esses Moços", "Nunca", "Vingança"). Mas o maior momento é "Tanta Cidade", parceria de Tito Madi/Berimbau, que num arranjo magnífico de Eduardo Assad, com solos de sax alto (Rivert Santos), e trombone (Walter Azevedo) se constitui não só numa das músicas mais bonitas deste ano - mas, assim como Tito já havia feito para o Rio Grande do Sul ("Gauchinha Bem Querer", 1957) cria uma belíssima canção de amor à cidade de São Paulo. Uma belíssima canção que por si já vale o retorno de Nora Ney, a cantora que instituiu "a escola do caso de amor na canção brasileira"-, como disse o amigo Zuza na contracapa.
A propósito! Lamentável que a produção gráfica não acompanhasse o nível artístico do disco. Em papelão de menor qualidade, sem encarte, com as letras, a apresentação do elepê é tão pobre que não há nem condições de reproduzir a sua imagem. Nora Ney mereceria um tratamento melhor. De autêntica rainha que é.
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