Nos documentários, visões dramáticas de nosso país
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 01 de novembro de 1986
Brasília
Poucas vezes um festival de cinema começou tão tranqüilo como o de Brasília, nesta sua décima nona edição. A tal ponto que a cineasta Tizuka Yamazaki, diretora de "Gaijin", integrando o júri de longa-metragem, conhecida por seu temperamento alegre e festivalesco, reclamava de "alguma coisa que faça o festival acontecer". Talvez para dar um pouco de vibração ao festival, Tizuka foi uma das estimuladoras da nota de protesto, aprovada na tarde de quinta-feira, 30, contra as críticas feitas por José Bernardes do semanário "José", uma das publicações mais importantes editadas em Brasília - e que destacou em seu comentário a falta de renovação dos filmes em exibição, posição, naturalmente, contestada por muitos dos cineastas aqui presentes.
Concentrado no Hotel São Marcos, com exibição de filmes no Cine Brasília, pertencente à Fundação Cultural do Distrito Federal, o festival vale especialmente pela aproximação com realizadores do cinema brasileiro, que exibindo seus curtas, médias e longas, oferecem, depois, oportunidade de trocarem idéias com todos os interessados.
Supersessões - um dos pontos mais discutidos é a questão da duração das sessões à noite. Com início às 21 horas, e reunindo até quatro programas - ao incluir também curtas "Hors concours" - as sessões prolongam-se por mais de três horas "o que nenhum cristão agüenta", queixava-se após a exibição de "Chico Rei", o seu realizador, Walter Lima Jr.
Na quinta-feira, 30, "Quebrando a Cara", documentário de 75 minutos de Ugo Giorgetti, sobre Eder Jofre, teve problemas de projeção (foi realizado em 16mm) e sua exibição só começou às 23h15min, para tristeza de seu realizador - que preferia vê-lo mostrado num espaço com melhores condições. Apesar disto, o filme foi visto com interesse, mostrando a trajetória da família Jofre no boxe brasileiro.
Realidade nacional - de todas as sessões deste 19º Festival do Cinema Brasileiro, nenhuma foi tão pesada como a de quinta-feira, dia 31. A primeira imagem projetada na tela não poderia ser mais dilacerante: um braço esmigalhado saindo de uma máquina de beneficiamento de rami. Para quem pensa que a mutilação devido a precariedade das máquinas empregadas no beneficiamento desta cultura é "privilégio" da região de Assaí, no Norte do Paraná, o curta-metragem de Fernando Belens, cineasta e médico, 35 anos, intitulado "Fibra", mostra a tragédia de milhares de mutilados em acidentes de trabalhos, que vivem numa das regiões daquele Estado - Conceição do Caité. Realizado com vistas a denunciar os problemas da falta de segurança neste trabalho extremamente perigoso, "Fibra", com vinte 20 de duração, jamais chegará a ser projetado (aliás, foi produzido apenas para ter exibições dirigidas) no circuito comercial. As imagens trágicas de centenas de homens e mulheres mutilados pelas máquinas são doloridas e a narração, feita pelas próprias vítimas, é de causar revolta aos expectadores. Só na região há 3 mil mutilados.
Como "Fibra", outros curtas e médias metragens em exibição neste festival documentam aspectos da realidade brasileira. "A Igreja da Libertação", 59 minutos, de Sílvio Da-Rin, sobre a presença das comunidades de base, é um média-metragem dos mais atuais - colocando-se ao lado de "A Igreja dos Oprimidos", de Jorge Bodanski e Helena Salem (jornalista de "O Globo", cobrindo o festival) como uma mostra visual da corajosa presença da igreja na defesa das classes menos favorecidas - operários, índios etc. O mesmo tema - a força social da igreja - motiva um terceiro longa-metragem, ainda sem título, que Geraldo Sarno está realizando, só que com abrangência em toda América Latina.
Marlene França, ex-atriz (chegou até a fazer filmes sensuais para a época - década de 60), que com "Frei Tito" já havia merecido grande admiração, é a realizadora de "Mulheres da Terra", média-metragem de 35 minutos, também numa abordagem social e que fará parte da programação de amanhã, segunda-feira.
Debate inflamado - esbravejando, furioso, com ataques pessoais ao crítico Wilson Cunha, do "Jornal do Brasil" - a quem fez as mais violentas acusações - o curta-metragista Sérgio Santeiro, carioca, 41 anos - foi o responsável pela primeira explosão no círculo de debates entre realizadores e público/jornalistas, no auditório do Hotel São Marcos.
Tendo o projeto de um minicurta, quase um vídeo clip de apenas 3 minutos - "Isto é Brasil", recusado pela comissão de seleção de curtas para financiamento (pretendia Cz$ 85 mil), da qual fazia parte o crítico Wilson Cunha, Santeiro usou quase 40 minutos da manhã de sexta-feira para fazer críticas à Embrafilmes, à política cultural, às empresas de cinema americanas - em ataques histéricos. Seu filme, havia sido exibido, hors concours, na quinta-feira - e na verdade nem chega a merecer maiores considerações: com três intérpretes - dois moços e uma bela loira - compõe três cenas críticas à Nova República, cada uma de um minuto.
Famoso por seu temperamento agressivo - buscando resgatar um comportamento glauberiano de denúncias a todos e tudo - Sérgio acabou provocando o primeiro incidente no festival. Mas no final elegantemente, o jornalista Wilson cunha o convidou para almoçar juntos, mostrando que a explosão de fúria não passou de uma descarga emocional. Além do mais, embora tenha atacado violentamente a Embrafilmes, de quem diz jamais ter tido qualquer financiamento, Santeiro já recebeu, Cz$ 158.200,00 de um total de Cz$ 361.836,00 para o seu longa-metragem "Encontro com Prestes", fotografia de Roberto Maia, que registra a volta ao Brasil de Luíz Carlos Prestes, em 1979, e a comemoração do seu 83º aniversário com um importante pronunciamento público. O filme - em fase de realização - mostrará ainda o velho líder comunista através de depoimentos de antigos companheiros de militância política e de conversa em seus momentos de descontração.
LEGENDA FOTO - Realizado com imensas dificuldades - arrastando-se por anos para ser concluído - "Chico Rei", de Walter Lima Júnior, aborda um personagem histórico de Minas Gerais.
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