O canto dos Pampas (V) - O som de Porto Alegre e a bossa de Leonardo
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 24 de março de 1985
Um gaúcho de adoção e um gaúcho exilado foram responsáveis por duas das mais interessantes produções independentes lançadas já há muitos meses mas que, dentro da permanência que os discos alternativos obtêm, merecem ser registrados.
Flautista, compositor, animador cultural e produtor, o mineiro Kim Ribeiro está há alguns anos radicado em Porto Alegre. Ali chegou após experiências em grupos populares e mesmo eruditos e, já há 5 anos fazia um primeiro elepê solo, seguido depois de um disco em duo com o violonista Raimundo Riccioli. Paralelamente a trabalhos editoriais, produziu "Porto Alegre 83", uma espécie de elepê-amostragem de diferentes compositores e intérpretes - um mapeamento sonoro, como diz Celso Loureiro Chaves na contracapa. Se perde em unidade - impossível neste tipo de produção - ganha em sinceridade. Assim temos o próprio Kim Ribeiro, em solo na faixa "Rosa Formosa" e com o grupo Raiz de Pedra em "Radiko Lapis". O mesmo Raiz de Pedra defende "Evasão". O excelente pianista, arranjador e compositor Geraldo Flach pode ser ouvido em "Sacudindo", enquanto a dupla GibaGiba e Toneco tem também duas faixas: "Salas Rodando" e "Sopapo". Cao Trem ("Solidão" e "Saudade") e Sá Brito ("Na Boca da Noite"), complementam a participação nesta produção independente que pode ser solicitada a Caixa Postal 11049, Menino Deus, CEP 90.000 - Porto Alegre.
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Gaúcho de Quaraí, na fronteira com o Uruguai, Leonardo Ribeiro cresceu em permanente contato com a música latino-americana de raiz folclórica, cantada em castelhano. Ao mesmo tempo passava todos os seus períodos de férias em Porto Alegre - bebendo na fonte a música dor-de-cotovelo em Lupiscínio Rodrigues. Deixando Quaraí em 1973, foi direto à Europa. Morou anos em Barcelona, conheceu toda a Espanha e tocou junto a músicos espanhóis. Em 1975 foi para a França. Ali, no caldeirão cultural que é Paris, ouvidos para o som dos grandes músicos de jazz e do rock internacionais, tocou nos mais diferentes contextos musicais e desenvolveu um belíssimo trabalho ao lado da dupla Teca e Calazans, gravando com ele três discos: "Cadê o Povo", "Desafio de Viola" e "Jardim Exotique".
Com a anistia e o retorno da dupla Teca Calazans e Ricardo Villas (ex-"Momento Quatro" e que havia deixado o Brasil por ter atuado no movimento de Guerrilha Urbana), Leonardo também voltou ao Brasil, em fins de 1979. Como diz o seu amigo Matias José Ribeiro, sua música passou então também a ser abastecida pelo que havia de novo. Com muitas dificuldades, Leonardo gravou entre janeiro a março de 1982 um elepê independente ("Eu e o meu coração"), que saiu com o selo Amigo é Pra Essas Coisas. O resultado é dos mais interessantes: parcerias com Gonzaguinha (o irônico "O Errado Somos EU", com Teca/Ricardo (mais Barney Willen) "Jardim Exotique", "Banda Oriental", "Memória da Mulher"), ou fazendo letra e música ("Chacareira"). Há também faixas de outros autores significativos; a "Milonga de andar lejos", do uruguaio Daniel Viglietti (que passou anos no exílio), Lupiscínio Rodrigues ("Eu e o Meu Coração") ou resgatando a música de um outro gaúcho marcante, Caco Velho (Mateus Nunes, Porto Alegre, 12/3/1909 - São Paulo, 14/9/1971) gravando o emocionante "Meu Guarda-Chuva", na qual só se acompanha ao violão. Produção esmerada, com participações especiais de Helvius Vilela nos teclados, Robertinho Silva na bateria, Luiz Alves no baixo acústico, Nelson Ângelo no violão - entre outros, Leonardo emociona em suas músicas. Uma voz doce e redonda, momentos que nos remetem ao melhor da Bossa Nova - mas mataram. Por onde andará agora Leonardo Ribeiro? Um talento grande e que, como tantos, não teve até agora o seu merecido espaço no mapa da música!
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