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Aramis

O Natal da rua, na poesia de Zé Leite

Indicativo maior dos tempos bicudos que todos atravessamos é a redução do número de brindes - e mesmo mensagens de fim-de-ano. A época de fartas cestas de Natal e caixas de uísque e vinho importados há muito acabou e mesmo os mais influentes gerentes de bancos e diretores de grandes empresas (especialmente as de economia mista), tradicionalmente acostumados a receber centenas de presentes por ocasião de fim-de-ano, confessam que, em 1981 - como aconteceu em 80, 79 e 78 - só mesmo alguns clientes mais ligados é que estão fazendo chegar alguns (tímidos) brindes - geralmente produtos made in Brazil, pois as taxações com os supérfluos desanimam qualquer tentativa de maior gentileza. Até mesmo os cartões de Natal estão reduzidos. Se no serviço público houve a saudável iniciativa de cortar despesas oficiais com tais impressos, as empresas particulares - e mesmo pessoas físicas, também reduziram sua correspondência natalina, pois afora o preço de cada impresso as taxações dos Correios e Telégrafos limitam maiores manifestações de carinho neste mês de dezembro. xxx Entretanto se falta dinheiro, sobra originalidade. O jornalista, letrista e poeta José Carlos Leite, que acaba de lançar um dos melhores livros do ano - "Domingo José Vai à Festa", encontrou uma forma personalíssima e emocionante de manifestar seu carinho aos amigos. Preparou um belo poema, que soa como uma mensagem de Natal e que, por sua oportunidade, merece aqui sua transcrição. xxx Havia um natal ontem na esquina de minha rua. Era um Natal magro, esquálido, seco como essas rosas desidratadas em vasos pálidos de salas escuras. Era uma festa cheia de rugas na cara e tinha jeito de velhinho de asilo que nunca toma sol... Não havia como conversar com o Natal na esquina de minha rua. Estávamos sós - eu e a festa. Desiludidos nós dois e iludidos ao mesmo tempo pois acreditávamos em lendas e luas no brilho colorido das luzes, naqueles risos infantis que ardiam afinados em nossos ouvidos carentes de futuro. O Natal tinha um ar cansado e resto de sorriso nos lábios uma incontida vontade de ganhar um presente - e dar também - de receber um abraço, de oferecer um afeto, de descortinar cortinas mil de sentar em paz e ver uma vez extinguir-se em silêncio sob o silêncio da noite imaculada. Estávamos doidos nós dois. A felicidade se comprimia somente dentro das casas. Boêmios eu e ele - o Natal - nas calçadas frias da noite. O feriado de fim de ano, a mesa posta, os laços coloridos. Sem nada, sem dinheiro, nem histórias, nem vaidades resgatávamos nossos passados em busca de ilusões. Ah, os retalhos que encontramos, fizeram-nos rir de nós mesmos. E assim bebemos nossa alegria e conversamos a noite toda e nos tocamos e nos apoiamos mansamente, amigamente, sinceramente. Havia um Natal ontem na esquina de minha vida.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
6
17/12/1981

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