O rock sinfônico (I)
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 02 de fevereiro de 1975
Como a velha lei de Lavoussier se aplica como uma luva no campo musical - nada se cria, tudo se transforma - o fato que as diversas correntes que se degladiam (às vezes nem tanto) no que podemos chamar, globalmente, de musica contemporânea, hoje já não podem merecer compartimentos estanques. O clássico, o jazz, o blue, o rock e tantos outras designações que uma musica comporte foram absorvidas. Recriados, transformados por instrumentistas e compositores abertos - como devem ser os verdadeiros artistas - e o resultado é que ao rock descompromissado, dos anos 50 e a música dita "pop", que tendo sua base nos instrumentos e parafernalia eletrónica (com amplos e maiores recursos, do que os instrumentos convencionais, diga-se a bem da verdade) sucederam-se criações realmente extraordinárias em termos de fusão de estilos e de sabia utilização de todos os instrumentos e recursos possíveis de serem aproveitados no mundo do som. Hoje, tão importante quanto o compositor, o cantor e o instrumentista - geralmente uma só pessoa ou um só grupo, ocupando-se das múltiplas etapas - é o engenheiro de som e, no caso dos espetáculos ao vivo, da equipe responsável pela iluminação e efeitos especiais. Um tema tão amplo que comportaria não um simples registro, mas uma série de reportagens.
De toda esta evolução sentida na música contemporânea, em termos populares, surgiu o que alguns chamam de "rock sinfônico". O trabalho mais amplo, com base em estudos musicais mais profundos, desenvolvidos pelos grupos originários do universo pop, mas que a partir, vamos dizer, do início da década, passaram a se preocupar em oferecer um trabalho capaz de impressionar não apenas a faixa jovem consumidora voraz do "som pauleira" (o heavy-hord-rock) mas aquela parcela de consumidores de musica internacional, sem preconceitos, abertos as boas e válidas tendências. Nisto, como em muito de importante que aconteceu na música nos últimos 10 anos, os Beatles tiveram preponderante influência. Há oito anos, quando em junho de 1967 gravam o hoje antológico "Sergeant pepper's Lonely Hearts Club Band", os quatro cabeludos que transformaram muitos conceitos musicais, já demonstravam as possibilidades de instrumentistas-interpretes aceitos pela faixa mais jovem de público, evoluírem por caminhos mais amplos.
Três anos, antes, em 1964 quando Londres ainda não era a terra prometida para quem perto de 20 anos (81), começava também a nascer outro grupo de fundamental importância para a (boa) evolução do universo pop: o Pink Floyd, criado do encontro de três estudantes de arquitetura - Richard "Rick" Wright, Nicholas "Nick" Mason, e Roger Waters, com uma figura estranha chamada Roger Keith Barret, apelidado Syd, que viria a ser a mola propulsora na criação do conjunto, participaria de seus primeiros êxitos, mas que posteriormente, vitima de drogas, dele seria obrigado a se afastar, substituído pelo guitarrista David Gilmour, seu antigo amigo.
Em diferentes partes, e por motivos vários, outros grupos ou instrumentistas passaram a tentar um trabalho (individual ou coletivo) de maior amplidão: o guitarrista John McLaughlin e a sua Mahavishnu Orchestra; o Emerson, Lake & Palmer fazendo um arranjo pop para uma clássica peça ("Pictures At Na Exhibition") do russo Mussogorgsky (1839-1881); o antigo organista do Yes, Rick Wakeman, afastando-se do conjunto para durante oito meses criar uma verdadeira obra-prima da musica contemporânea chamada "As Seis Esposas de Henrique VIII" onde executou dezenas de diferentes instrumentos (quase a totalidade de teclados), resultando um álbum que mereceu a consagração em 1973. Na Alemanha, na Holanda (Focus) e mesmo nos Estados Unido, cresceram as tendências desta nova fase musical - ainda a espera de uma necessária analise mais profunda - e que se torna difícil de estudar, não só pela falta de maiores informações (mesmo aos especialistas da musica pop, como, entre nós, o entre nós o jovem Nilson Pohl, colega de redação), mas pelo próprio processo em evolução.
Assim, apenas como registro dos álbuns de musica internacional Contemporânea, Popular - e não apenas "Pop" - e que genericamente também se pode chamar de "rock sinfônico" (embora a amplitude e seriedade da designação traga uma responsabilidade muito grande a tal qualificação), que apareceram nos últimos meses no Brasil, iniciamos aqui a um rápido "review", Absolutamente sem qualquer pretensão de esgotar o assunto, apenas como rápida indicação aos nossos leitores (como sempre repetimos, voltados principalmente para o Interior, onde O ESTADO tem grande circulação e onde os interessados em musica recebem menos cargas de informação). Em nossa opinião, particular, se tratam dos melhores discos do que se poderia enquadrar na musica pop - e que valem realmente o que custam. Entre centenas de lançamentos semanais, se destacam pela maior base musical-cultural de seus criadores, pelas novas e sérias propostas que abrem, enfim por refletirem uma real pesquisa - palavra tão deturpada e que tem sido invocada para justificar os maiores absurdos cometidos no mundo da musica em nossos dias.
A VIAGEM DE ROCK; WAKEMAN
De Rick Wakeman, há mais de um ano, já reunimos uma série de informações por ocasião do lançamento no Brasil de seu lp "The Six Wives of Henry VIII" A & M Records/Odeon), que não tivemos duvidas em colocar no primeiro lugar de nossa lista dos melhores lps internacionais de 73.
Como em 1974, o seu "Journey To The Center Of The Earth" (A & M Records/Odeon, setembro/74) foi também em nossa opinião, o mais importante álbum do ano. Mas, não custa repetir algo sobre Wakeman. Carlos A. Gouveia, editor de uma página de rock na "Folha de São Paulo", escreveu (acertadamente) que Rick "nascido para ser um "super-star" foi treinado para usar o piano como um possante carro de Formula-1".
Enquanto todos os garotos de sua idade, na infância preocupavam-se em assistir jogos de futebol, ele sentava-se ao piano. Seu sonho era ser um grande concertista. Mais tarde, foi convidado para tocar no "Strawbs" (hoje um conjunto da terceira geração do rock), o que aceitou "por necessidade do dinheiro". Quando entrou para o grupo recebeu a promessa de que ganharia 30 libras esterlinas. (Cr$ 450,00) por semana. Passados vários meses, Wakeman encontrou-se em dificuldades. O conjunto não ia bem e os pagamentos vinham com atraso. Estava a ponto de ser despejado de seu quarto por falta de pagamento quando foi convidado a entrar no Yes, onde passaria a ganhar 50 libras semanais. Em lugar de ganhar as 50, Wakeman passou a 70 libras, e com uma semana adiantada, o bastante para colocar a sobrevivência antes da arte. No Yes (2), os progressos foram tantos que hoje Wakeman possui 70 mil libras em caixa, sem usar mais 70 mil no banco de Jersey, 200 mil libras em um banco de Nova York, 400 mil em propriedades imobiliárias e mais 100 mil libras em automóveis.
Quando Rick decidiu deixar o Yes, passou a desenvolver um trabalho para o qual vinha se preparando há muito tempo. E o resultado foi que "The Six Wives of Henry VIII" produzido em 1972 (no Brasil só apareceu em 73) vendeu mais de um milhão de cópias. Seu publico passou então a aguardar o que ele poderia fazer depois "daquilo". E o que veio foi o extraordinário "Journey To The Centre Of The Earth", uma sinfonia pop-erudita inspirada no romance de Jules Verne (1828-1895), que conta em quatro movimentos a visão musical da extraordinária viagem que o professor Lidimbrooke, de Hamburgo, e seu sobrinho Axel, iniciam a 24 de maio de 1863, guiados por um manuscrito do século 12, para chegar ao centro da terra (3).
Esta obra, foi estreada por Rick Wakeman no Royal Festival Hall London, na sexta-feira, 28 de janeiro de 1974, com a The London Symphony Orchestra e The English Chamber Choir, dirigidos pelo maestro David Measham, com textos narrados na claríssima voz do ator David Hemmings (4). O espetáculo foi gravado ao vivo pela A & M Records, que lançou o lp simultaneamente em vários países; obtendo consagradora aceitação.
Em outubro do ano passado, no Madison Square Garden, em Nova York, perante 20 mil pessoas, Rick Wakeman repetiu o espetáculo só que num concerto mais ampliado. Na descrição da jornalista Beatriz Schiller, correspondente do "Jornal do Brasil" (23/10/74), "quando o palco se escureceu ouviu-se a gravação da "Primeira Sinfonia" de Rachmaninov. Quando os refletores se acenderam novamente, lá estava em cena Rick Wakeman, com seus cabelos sedosos, louros e muito longos caindo sobre uma capa imaculadamente branca. Parecia um príncipe de contos de fadas. O público delirava, enquanto o pianista entrava em seu compartimento sonoro cercado por quatro teclados: um órgão, um piano, um sintetizador e um mellotron. E começaram os sons de uma seleção de trechos de "The Six Wives os Henry VIII", dedicados a três de suas infelizes esposas - Catherine Parr, Catherine Howarde e Ann Boleyn. No final da primeira parte, obedecendo à rubrica, no programa, "plus something completely differente", um grupo de mulheres vestidas à moda dos anos 20 adentrou o palco, ao som de um piano martelando um charleston.
Finalmente, continuando a sessão de divertimento, Rick faz um comentário irônico sobre os comerciais da televisão americana, com uma peça em que arranjo para orquestra e piano os cinco mais chatos ou desgastados, incluindo o da chicletes Wrigley's e o "tudo vai melhor com Coca-Cola".
Sempre acompanhado pela National Phill armonic Orchestra (35 músicos) e um coro de 19 pessoas, a segunda parte do espetáculo foi dedicada à "Viagem ao Centro da Terra", conto narrado e musicado em que, como dissemos, o professor Lidin brook e seu sobrinho Axel partem de Hamburgo e vão até a Islandia seguindo um roteiro inspirado por um pergaminho escrito por um alquimista e que dizia: "Entre na cratera de Sneffleds Yokul, sobre a qual as sombras do Seataris caem antes das Calendas de julho, e você viajante audacioso, alcançará o centro da Terra. Eu fiz isso".
Para reproduzir essa atmosfera de fantasia, Rick Wakeman, segundo a descrição de Beatriz Schiller, usou todos os recursos: orquestra sinfônica, coro e banda de seis músicos, solos em seus variados teclados, além de efeitos puramente teatrais. Como um momento em que os dois aventureiros encontram, nas profundezas terrestres, monstros em luta: dois monumentais animais antideluvianos de plásticos aparecem, aumentando a vibração da platéia. O show termina sob uma tempestade de aplausos, com fósforos acesos (UMA TRADIÇÃO DESDE OS ESPETÁCULOS DE Bob Dylan), gritos, refletores coloridos passando sobre o público. Alguns fãs mais exaltados soltam fogos de [artifícios]".
A jornalisticamente descrição da correspondente do JB em Nova York, que assistiu a estreia no inicio da tournée de Wakeman por 20 cidades americanas, em outubro/novembro do ano passado, auxilia a compreensão da dimensão do espetáculo, em seu envolvimento realmente mágico.
Um espetáculo desta dimensão jamais terá condições de ser visto no Brasil - e mesmo na Europa e Estados Unidos teve poucas encenações, tal o seu custo. Mas a gravação perfeita, permite ao menos uma idéia de sua criatividade e, em termos musicais, demonstra que Wakeman, ex-aluno da Royal Adacemy of Music, onde estudou piano, clarinete e orquestração, nos reserva ainda trabalhos mais surpreendentes para o futuro.
Houve quem não se entusiasmasse com este "Journey To The Centre Of The Earth" da mesma forma que ocorreu com "The Six Wives Of Henry VIII" o que é compreensível. Afinal, nesta sinfonia, rock, Rick desenvolveu um trabalho menos individual, com a participação de quase 100 outros músicos, cantores e técnicos, mas nem por isto menos fascinante. A gravação perfeita assegurada pelo estúdio movel Lym, de Ronnie Lane (ex-Faces), garantiu uma perfeição no registro das quatro "songs" (ou movimentos): The Journey, Recollection (lado 1), The a Battle e The forest (lado 2), Afora a Orquestra Sinfônica e o Coral de Câmara Ingles, que tiveram arranjos especiais dos Maestros Wil Malone e Danny Beckerman, tomaram parte do espetáculo os vocalistas Garry Pickford-Hopkins e Ashley Holt, o guitarrista Mike Egam, o baixista Roger Newell e o baterista Barney James.
Poucos trabalhos musicais conseguiram um envolvimento mágico-sinfonico tão grande quanto esta sinfonia-rock de Wakeman, apresentado num álbum enriquecendo com os textos das canções, distribuídos entre oito páginas de maravilhosas fotos a cores.
Curiosamente de todas as previsões futurologistas feitas por Jules Verne em seus admiráveis romances escritos no século passado, até hoje uma das poucas - talvez a única - que o homem ainda não realizou, foi a viagem ao centro da Terra. Rick Wakeman, com esta sua obra, consegue ao menos no mundo mágico do som, nos dar esta sensação de conhecimento de uma realidade sobre nossos pés ainda pouco conhecida e tão misteriosa. Por isto tudo, acreditamos que "Journey to The Centre Of The Earth" não é apenas O melhor disco Internacional de 1974: é, sim, uma das peças de musica contemporânea (popular) mais importantes de nossa geração.
NOTAS
(1) A propósito do "Pink Floyd", ver o longo ensaio de Ana Maria Bahiana em "Rock / A História e A Glória", número 3, nas bancas.
(2) O Yes foi criado em 1968 por Jon Anderson (vocal, ex-Gun), Chris Squire (baixo, ex-Synn), Peters Banks (guitarra ex-Synn), Tony Kaye (claviers) e Bill Brufford (bateria). Sua primeira aparição pública foi no Marquee Clube, em Londres. Os compositores do grupo, anderson/Squire, tinham boa influencia jazzística. Em 1970, após o segundo álbum do grupo, Banks foi substituído por Steve Howe (ex-Tomorrow) e em 1971 Rick Wakeman, ex-Strawbs, entrou no lugar de Tony Kaye. Com esta formação, o Yes entrou no mercado pop americano. Em 1972 houve outra substituição: Bill Bruffort deixou o conjunto para substituir a Bob Fripp no King Bruford deixou o conjunto para a Bob Fripp no King Crimson, entrando então em seu lugar um antigo baterista do mundo pop: Allan White (ex-Plastic Ono Band, ex-Balls, ex-Ginger Baker's Air Force, ex-George Harrison e ex-Joe Coker).
(3) O romance "Viagem ao Centro da Terra" foi filmado em 1959, em produção de Charles Brackett para a 20th Century Fox, com direção de Henry Levin, roteiro de Brackett e Walter Rescht, e tendo no elenco, James Masoh como o professor Oliver Lindenbrook e o cantor Pat Boone como Alex. Atuavam ainda Arlene Dahl e Diane Baker, ambas atrizes há muito ausente do cinema. O filme, com metragem de 132 minutos, cinemascope e cor-de-luxe, passou despercebido e já foi reprisado várias vezes na televisão.
(4) David Hemmings, ingles de Guildford, Surrey, 34 anos, aos 9 anos já era soprano na English Opera Group's atuando numa montagem de "The Turn of the Screw" ("A Outra Volta do Parafuso") baseado em conto de Henry James, filmado em 1962 por Jack Clayton com o título de "Os Inocentes"), Depois de fazer a Epson School of Art, em 1965 passou a atuar em televisão e teatro. Em 1957, em "Santa Joana" de Otto Preminger, onde também estreava Jean Seberg, fazia seu primeiro papel no cinema.
Embora tivesse atuado ainda em "Some people" (62), só em 1966, interpretando o fotografo de "Blow-Up... Depois Daquele Beijo" (de Michelangelo Antonioni) obtinha projeção internacional.
Posteriormente, entre outros filmes, Hemmings atuou em "Barbarella" (67), "A Carga da Brigada Ligeira" (68) e "Alfredo, O Grande" (69).
LEGENDA FOTO : Rick Wakeman
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