Reichert, um mestre esquecido da flauta
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 01 de março de 1986
Seguindo os salutares exemplos das Universidades de São Paulo, Bahia e de Campinas, a de Brasília também inicia um programa de edições fonográficas. E não poderia começar de forma mais interessante, em termos culturais: um belíssimo álbum revelando a obra do compositor belga Matheus André Reichert (1830-1880) na interpretação da flautista Odette Ernest Dias e da pianista Elza Zauko Gushikem.
Juntas, Odette e Elza já gravaram "Recital" e "Sarau Brasileiro" - este editado pela Federação das Associações Atléticas do Banco do Brasil.
Odette, nascida em Paris, primeiro prêmio do Conservatório Superior de Música de Paris, em 1951, no Brasil há 34 anos - aqui veio a convite do maestro Eleazar de Carvalho para integrar a Orquestra Sinfônica Brasileira e desde 1974 é professora do Departamento de Arte da Universidade de Brasília, é uma excelente instrumentista e dedicada pesquisadora. Assim gravou "História da Flauta Brasileira", editada pelo Estúdio Eldorado e em suas pesquisas musicais se interessou pela obra pouco conhecida (mas da maior importância) de Matheus André, músico ambulante e que tocou ainda garoto em cafés e botequins. Aluno do Conservatório de Bruxelas, em 1844, três anos depois já era premiado por suas habilidades na flauta.
Fez concertos nas principais cidades da Bélgica e Holanda e depois de passagem pela Inglaterra, foi contratado, ao lado de outros artistas notáveis na época, pelo Imperador D. Pedro II, que desejava formar uma boa orquestra para tocar no Palácio da Quinta da Boa Vista, em São Cristovão. Assim, juntamente com Reichert vieram os célebres clarinetistas Cavellini e o trompetista Cavalli, ambos italianos, e mais os violinistas André e Luis Glavenstein, chegando ao Rio de Janeiro a 8 de junho de 1859, viajando pelo navio Ville Riché.
Contratados pela Corte, os músicos aqui seguiram posteriormente caminhos diferentes. Reichert, de espírito boêmio desde a juventude, teve decadência artística após um período de glória - como virtuose da flauta, compositor e mesmo professor - passando seus últimos anos na miséria, recolhido à Santa Casa de Misericórdia, falecendo a 15 de março de 1880. A edição de algumas de suas composições pela Schott, de Mayence, lhe deram alguns recursos em seu triste final de vida. Sua obra foi sendo esquecida e para encontrar as partituras de muitas de suas composições, a flautista Odette Ernest Dias fez pesquisas na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro e, especialmente, na França e Bégica. O esforço valeu, pois assim recolheu um precioso material, do qual selecionou oito belíssimas composições, que nos remetem a música do século XIX, na singeleza e ternura para flauta e que, se não fosse esse belo trabalho de pesquisa musical, continuaria ignorado.
Assim, com a harmonia da flauta de Odette Ernest Dias e os teclados de Elza Kazuko Gushikem, temos "Souvenir Du Para" - um "Andante Elégiaque", criado por Reichert como reflexo de uma viagem feita à Província do Pará; a "Tarentelle" - chamado de "Estudo de Salão", definida como "em endiabrado ritmo napolitano"; "Rêverie", peça melancólica que dedicou ao seu professor de flauta, o também belga Jules Demeur Charton; "La Coquette" (A Faceira), polca de salão na qual Reichert assume seu "brasileirismo"; "Martha", "petit morceau de salon", "Opus 18", última composição de Reichert, inspirada num tema da ópera de Flotow; "La Sensetive", outra polka de salão, mostrando a "abrasileiração" do ritmo europeu; "Romance Sans Parole", uma "romaza" ao estilo de Mendelsohn e, resultante da viagem feita ao Norte-Nordeste quando ainda estava em boa fase artística.
O álbum fonográfico é completado com uma publicação de 24 páginas, inúmeras ilustrações de época, texto em português e francês, fazendo deste, sem dúvida, um dos mais importantes lançamentos culturais do ano. Como dificilmente será encontrado em nossas precárias lojas de discos, deve ser solicitado diretamente à Editora da Universidade de Brasília, Campus Universitário, Asa Norte, 70.910. Brasília, D.F.
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