Tinhorão fala do som e dos negros em Portugal
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 19 de junho de 1988
Há pelo menos 10 anos que o pseudônimo adotado pelo jornalista José Ramos, santista, 60 anos completados no dia 7 de fevereiro, virou uma espécie de sinônimo do radicalismo pela defesa dos valores autenticamente brasileiros e populares. Mesmo sem ter coluna na imprensa há seis anos - deixou o caderno B do "Jornal do Brasil" em fins de 1982, e nunca mais teve chances de voltar a escrever num grande jornal, regularmente - Tinhorão é um dos homens mais conhecidos no que se refere à cultura popular, especialmente a música. Desde os seus tempos de colaborador da revista "Guaíra", em Curitiba - na década de 40 - e, especialmente no "Diário Carioca" e "Jornal do Brasil", trouxe a marca do inconformismo de quem não aceita o colonialismo cultural, a imposição das multinacionais na indústria cultural - especialmente na produção de sucessos musicais.
Quando havia um extasiamento pela abertura do mercado americano para a Bossa Nova, Tinhorão publicava "O samba agora vai... a farsa da música popular no Exterior" no qual, mergulhado na história, provava de que tudo tinha razões estritamente comerciais.
Seu radicalismo em favor das formas mais populares e humildes, atacando mesmo compositores de valor (como Antônio Carlos Jobim) que, entretanto, se abriam para o mercado internacional, o fez ser odiado e perseguidom mas jamais ignorado. E mesmo os seus mais figadais inimigos reconhecem a sua seriedade de pesquisador, que, formado em Direito (1953) e renunciando a uma vida de conforto burguês, preferiu a modéstia franciscana de um estúdio-apartamento no centro de São Paulo, entre milhares de livros, discos (principalmente 78rpm) e, sobretudo, muita documentação para desenvolver um trabalho que afora centenas de artigos na imprensa está também reunido em onze livros publicados em um ("A música popular no romance brasileiro") que há cinco anos no Instituto Nacional do Livro aguarda co-edição com a editora Alhambra, do Rio de Janeiro.
xxx
Vivendo modestamente - "aprendi a ser pobre, a me satisfazer com o mínimo" nos costuma dizer, mas tendo uma independência única como pesquisador e, principalmente polemista, a presença de Tinhorão em qualquer evento cultural no qual se discuta não apenas a música, mas a própria cultura brasileira, é fundamental. Um claro raciocínio, excelente verbalização, memória prodigiosa e, escondendo atrás de uma aparente brabeza uma alma de passarinho, de imenso coração, Tinhorão é uma das mais admiráveis pessoas de nosso mundo intelectual. No ano passado, por ocasião de uma belíssima promoção que o SESC-Portão realizou para valorização do Chorinho, Tinhorão aqui esteve, mostrando durante a palestra sua conferência - que ele prefere chamar de bate-papo - que não é tão radical quanto o pintam, "apenas um brasileiro indignado com a falta de vergonha na cara de falsos produtores culturais".
xxx
Depois de ficar quase sem publicar nenhum novo trabalho a não ser o opúsculo "Vida, tempo e obra de Manuel de Oliveira Paiva" (editado pela Secretaria da Cultura e Desporto, do Ceará), Tinhorão tem dois livros nas livrarias. Em maio, saiu "Os sons dos negros no Brasil - cantos-danças-folguedos: origens" (Art Editora, 138 páginas), enquanto pela editora Caminho de Lisboa, saiu "Os Negros em Portugal - uma presença silenciosa" (460 páginas, coleção Caminho), o que levou-a à capital lusitana, para palestras e lançamento de sua obra.
São dois livros, que uma vez confirmam porque Tinhorão deve ser respeitado. Ele vai afundo nas questões analisadas, mata a cobra e mostra o pau como de diz em linguagem popular: suas idéias não ficam soltas no ar. Ao contrário, prova historicamente, dentro de um raciocínio marxista, claro e objetivo, as questões econômicas, as lutas de classe, os preconceitos e tantos outros aspectos que sempre marcaram a chamada cultura oficial, elitista, daquela que tem suas raízes nas camadas mais baixas da população. Pode-se discordar de Tinhorão, mas para contradizê-lo há de se estudar muito e, como ele, também buscar argumentos profundos - o que mesmo seus mais ferozes opositores raramente conseguem.
xxx
Infelizmente "Os Negros em Portugal", sendo uma edição portuguesa, não se encontra facilmente nas livrarias. Já "Os sons dos negros no Brasil", editado pela Art Editora, do paulista Marcos Marcondes (que foi grande inspirador e mecenas para a produção e edição da indispensável "Enciclopédia da Música Brasileira", 1977).
Em "Os sons dos negros no Brasil", Tinhorão procurou fixar, pela primeira vez, o processo histórico de criação de manifestações culturais da área das camadas mais baixas - ponto de partida sócio-econômico que no caso do Brasil, implica em situar a contribuição negro-africana em primeiro plano - constituindo o resultado necessário de uma pergunta que Tinhorão, se fez, há 16 anos, ao concluir seu livro "Música popular - de Índios, negros e mestiços" (Vozes, esgotados em duas edições).
A pergunta era: quando teriam começado as relações entre a cultura européia, representada pelos portugueses da era das Grandes Navegações, e as culturas africanas, representadas pela gente negra transformada em trabalho escravo a partir de meados do século XV?
Para encontrar a resposta, Tinhorão foi aos arquivos portugueses, há oito anos passados, e o resultado de suas pesquisas foi uma conclusão surpreendente: o intercâmbio cultural europeu-africano começou muito mais cedo do que se imagina, e grande parte do que normalmente se estuda no Brasil nas áreas da religião, música, danças e folguedos populares como sendo tradição africano-brasileira constitui, na verdade, o prolongamento de uma herança negro portuguesa.
Baseado nessas descobertas - os africanos formavam, em 1552, dez por cento da população de Lisboa; a entrada dos negros nas confrarias de N.S. do Rosário remontava a inícios do século XVI, e já em meados deste século se realizavam coroações de reis do Congo nas igrejas Portuguesas - resultou "Os Negros em Portugal - uma presença silenciosa". E um livro que Tinhorão mostra aos próprios portugueses a sua dívida histórico-cultural para com os negros africanos e seus descendentes crioulos, até os mais desbotados, como o Marquês de Pombal, já apontado em um soneto satírico do século XVIII como "um quinto neto da rainha Ginga".
A leitura de Tinhorão faz com que compreendamos melhor o Brasil. Se ainda bem que o Brasil tem um intelectual da sua grandeza e dignidade.
Enviar novo comentário