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Tinhorão, um cruzado em defesa de nossa cultura

"O cara que fala pode dizer que não disse. Mas o que escreve não pode dizer que não escreveu. Por isso, sou vulnerável. Tudo o que eu disse, escrevi" (José Ramos Tinhorão, um jornalista honesto). Difícil encontrar alguém com alguma ligação na música popular que não tenha ouvido falar em José Ramos Tinhorão. Seja para xingá-lo - a maioria - seja para saber reconhecer seus méritos, este santista de 62 anos - completados em 7 de fevereiro, 40 de imprensa, é o pesquisador e crítico mais famoso da música popular brasileira. Há oito anos sem ter coluna - seu último emprego foi no "Jornal do Brasil", em cujo Caderno B manteve até 1982 um espaço em que defendia os mais corajosos pontos de vista - Tinhorão tem se dedicado basicamente a suas pesquisas, das quais acaba de resultar um novo livro - "História Social da Música Popular Brasileira" (327 páginas, capa de Rui S. Romão) para o qual só encontrou editor em Portugal (Editorial Caminho S/A/ Lisboa, 1980), embora uma parte da tiragem de 2.000 exemplares esteja sendo distribuída em algumas livrarias pela Ebradil - Empresa Brasileira de Distribuição de Livros (Rua Genebra, 139, CEP 013316, fone 34-4653, Bela Vista, São Paulo). Parece incrível que um livro que faz uma radiografia sobre a nossa música popular, em seu lado social, tenha que ser publicado em Portugal - tal a desatenção dos editores para com os temas que Tinhorão levanta. Há dois anos, a mesma casa publicadora portuguesa já havia lançado "Os Negros em Portugal", época em que a Art Editora (de São Paulo) fez uma mínima edição de outro de seus livros, "Os Sons dos Negros no Brasil" (138 páginas). Quando Tinhorão escrevia sua coluna de música diariamente - inicialmente no extinto "Diário Carioca" (a partir de 1959), depois no JB - mas passando, também, por outras publicações, seus comentários profundamente lúcidos e documentados irritavam quem via apenas o lado glamourizado de nossos compositores e intérpretes. Então, falar mal do crítico se tornou moda, prosseguindo mesmo depois que deixou o dia a dia da imprensa - e passando por pessoas que nunca tiveram capacidade de entender (e ler) seus textos. Em compensação, os mais lúcidos - mesmo quando criticados, como era o caso do grande Vinícius de Moraes (1913-1980) - jamais negaram seus méritos de historiador e pesquisador. José Ramos, que acrescentou o sobrenome-pseudônimo de Tinhorão em 1953, quando, formado em jornalismo, foi trabalhar no "Diário Carioca", e ali o chefe de redação, Everardo Ghilhon, lhe dizia, brincando, que "José Ramos e nome de ladrão de galinha. Melhor usar outra planta, o Tinhorão", jamais se importou em agradar ou não a ninguém. Sua absoluta independência e coerência o levaria a trocar, há mais de dez anos, o conforto de uma ótima residência, a esposa - filha de um general reformado e uma sogra implicante que o chamava de "o louco do sótão" - e três filhos para, em sua privacidade, poder se dedicar exclusivamente a sua paixão: o estudo não só da música, mas também de nossa cultura popular. Residindo num mínimo kitinete no terceiro andar do edifício São Lourenço, na Rua Maria Antonia, quase esquina com a da Consolação, em São Paulo, rodeado de prateleiras de livros, partituras, discos - que vão desde 78 rpm a elepês, além de preciosidades fonográficas (como cilindros sonoros), Tinhorão dorme num sleep-bag, tem uma vida monástica com seu pequeno rendimento autoral, e não esconde de ninguém suas limitações financeiras. Entretanto dispõe de tempo para aprofundar trabalhos da maior seriedade, cuja importância nem o mais estúpido de seus detratores conseguiria minimizar. Ao contrário, uma obra que cresce cada vez mais - e que, seja em ensaios, nos volumes que tem conseguido publicar ou em conferências, palestras e cursos, demonstram, para quem o conheça melhor, descobre uma pessoa admirável, que atrás de uma aparente sisudez, é atencioso, suave - e que conserva algo cada vez mais raro em nossos dias de fezes, oportunismo e ganância dos yuppies da comunicação: a honestidade ao invés da busca do sucesso e do dinheiro a qualquer preço. Vindo de um jornalismo pautado pela integridade, tendo passado por várias publicações - como a "Revista da Semana" e a curitibana "Guaíra" nos anos 50, José Ramos - que aos 17 anos já ganhava a vida como funcionário do Ministério da Fazenda (mas que trocaria pela imprensa), é daqueles estudiosos que "mata a cobra e mostra o pau". Seu interesse pela cultura popular em suas raízes lusitano-africanas, o levou a, por sua conta, viajar a Portugal, há três anos, para aprofundar as pesquisas das quais resultaram três de seus últimos treze livros publicados - enquanto aguarda editor para meia dúzia de outros trabalhos. Se não pode ainda estender suas pesquisas a países africanos por falta de patrocínio (o que fazem os embaixadores e adidos culturais das nações daquele continente, que têm levado tanta gente inútil a seus países e esquecem um estudioso como Tinhorão?), foi a fundo nas fontes lusitanas, estendendo, mais recentemente, também a Espanha, "onde a cultura branca e negra se prolonga", como declarava, há dois anos, quando da publicação de "Os Negros em Portugal". Em dois dos três encontros tradicionais a partir de 1979 - e no encontro informal de Tramandaí, RS, em 1987, Tinhorão sempre foi uma espécie de estrela - no bom sentido - por suas palestras e exposições corajosas e didáticas e intervenções inteligentes. Se não veio ao primeiro encontro, em Curitiba, por que na época estava em viagem à Europa, posteriormente aqui esteve fazendo palestras das mais oportunas. Há dois anos, veio a convite do Sesc-Portão, dentro de um ciclo sobre choro, quando surpreendeu por colocações novas inclusive em relação à importância de novas tecnologias - como as gravações CDs e a utilização de computadores, na remixagem fonográfica e pesquisa. Afinal, Tinhorão pode ser até radical algumas vezes, mas é uma inteligência privilegiada, que sabe reconhecer os avanços em favor do homem - desde que isto não represente o colonialismo cultural que ele, como um legítimo cruzado do Santo Graal, sempre combateu nos campos de batalha da fé de quem ama a nossa melhor - e mais autêntica - música. Um grande admirador de Tinhorão, o radialista, compositor e produtor do programa "Almoço à Brasileira" (Rádio Estadual do Paraná, 11 às 13h, diariamente), Cláudio Ribeiro, ex-diretor da Divisão de Música Popular da Secretaria da Cultura, entusiasmou-se tanto com o lançamento de "História Social da Música Popular Brasileira", que está quebrando lanças para conseguir patrocínio que possibilite convidá-lo para vir a Curitiba lançar um livro e fazer uma palestra. Eis uma oportunidade do secretário René Dotti, da Cultura, em viabilizar uma ótima promoção valorizando um grande intelectual brasileiro, prestigiando o único programa ao vivo, em defesa de nossa MPB, atualmente apresentado em Curitiba. LEGENDA FOTO - José Ramos Tinhorão: honestidade e coerência de pesquisador num trabalho da maior honestidade em novo livro - "História Social da Música Popular Brasileira".
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
2
12/08/1990

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