Um encontro (des)marcado pela paixão de Zélia, Fernando e poder temporário
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 26 de outubro de 1991
Não se fala há duas semanas em outra coisa: o livro da Zélia.
Nunca um livro foi tão comentado, discutido, xingado.
Há ameaça até de uma (quase) burra unanimidade: fazer da ex-ministra da Economia mulher mais criticada deste país - justamente agora, quando ela deixou o poder. Nem quando foi anunciado o Plano Collor II - com o sequestro das poupanças - Zélia Cardoso e Mello esteve em tanta evidência.
As três primeiras edições (10 mil exemplares cada) se esgotaram em questão de poucas horas e mesmo dispondo do mais moderno equipamento gráfico do Brasil a Record não está podendo atender todos os pedidos que chegam cada vez mais. Só no Paraná, Carlos Alberto Tonassi Maia, representante da editora, já vendeu mais de 5 mil exemplares - e após o livreiro Aramis Chain, da Nova Ordem, ter se recusado a comercializar "este livro pornográfico" - conforme repetiu várias vezes - o interesse aumentou, ainda mais.
"Tudo que se fala - e não tem sido pouco - sobre "Zélia, uma paixão", se traduz em maior interesse popular" - diz, sorrindo, o carioca Carlos Alberto, 44 anos, 22 de Record e que desde o ano passado em Curitiba vem fazendo a casa publicadora fundada por Alfredo Machado - e hoje presidida por seu filho, Sérgio - faturar cada vez mais com seus best-sellers. Ao qual, o livro de Zélia/Fernando Sabino acrescenta - com as maiores possibilidades de se tornar o campeão absoluto.
O livro & o fato
Com "Zélia, uma paixão" o brasileiro passa a não ser apenas o técnico de futebol, mas o crítico literário (e de comportamento) espontâneo: todos se acham com direito de criticar a obra sem mesmo a ler. Afinal, há apenas uma semana nas livrarias do Brasil, 90% dos entrevistados pela imprensa, rádio e televisão - e que quase unanimemente tem xingado Zélia e, Fernando Sabino - ainda nem leram as suas 269 páginas. Nunca, o velho jargão funcionou tanto:
- Não li e não gostei.
De princípio, mesmo gente aparentemente bem (in)formada, que se julga devesse ler o livro antes de sair atirando pedras na personagem e autor, tem cometido injustiças. Como a de acusar que o escândalo da exportação do café foi totalmente omitido. Mentira. Ao menos em duas vezes - o assunto é mencionado, sendo que na página 213, Sabino relata: "Quando viu (na lista dos exportadores envolvidos) o nome de um amigo pessoal e, por pouco não teve um colapso. Era enorme a sua decepção: semelhante procedimento poderia expô-la ao vexame de ver questionada a sua integridade moral. Aqui não mudava em nada a disposição de levar avante as investigações. Pelo contrário: agora é que iria mesmo até as últimas conseqüências".
Zélia levou a lista ao conhecimento do presidente Fernando Collor, dizendo que "se ele achasse conveniente, deixaria o ministério, para que as investigações corressem sem nenhum constrangimento. Collor mandou que prosseguissem, reiterando sua confiança na ministra".
Há muitas formas de ler e, principalmente, criticar "Zélia, uma paixão": do ponto de vista pessoal de uma mulher que chegando ao posto de maior poder no Brasil - depois do Presidente da República - revela agora sua fragilidade romântica, seus muitos (e muitos) envolvimentos amorosos - Pré-Bernardo Cabral (e mesmo com a relação paralela como mantinha com o amante austríaco, Alfred, que ela praticamente "cantou" durante uma de suas viagens à Europa). O aspecto visto como vingança ao cinquentão que após "seduzi-la" e prometer casamento em clima de Conto de Fadas - na Paris dos sonhos de todas as adolescentes - deixou-a numa solidão em um hotel de categoria muito menor do que os cinco estrelas a qual estava acostumada a freqüentar em seus tempos de poder - é um dos aspectos mais questionáveis - e especialmente comentados no ti-ti-ti de todas as rodas que se formam para arrasá-la (e ao livro). Nesta obra confessional - a mais corajosa que já se tem notícia de uma figura pública ocorrida no Brasil (e talvez mesmo em muitos outros países), Zélia fez questão de relacionar todos os seus envolvimentos amorosos - que não foram poucos, desde os tempos do Colégio Aplicação - quando a adolescente, filha de um delegado da DOPS, iniciava-se no comunismo - até seus dias atuais.
Fernando Sabino - que sem conhecer Zélia, a elogiou no programa "Jô Onze e Meia" (SBT/TV Iguaçu), no ano passado, quando estava lançando seu último livro de crônicas ("A Volta Por Cima" (Record, já em sexta edição), e só viria a se tornar amigo da ministra a partir de um encontro não marcado na entrada do restaurante The Place, em São Paulo assumiu o desafio de transformar em livro um depoimento pessoal, autorizado, e assumido que, para usar a expressão do próprio Collor (quando ela e Cabral revelaram sua paixão) era nitroglicerina pura.
Uma formação de jornalista - embora tenha sido sempre mais um cronista, um pouco distante das redações - motivou que Sabino realizasse uma tarefa que qualquer profissional da comunicação gostaria de fazer: escrever uma história verdadeira sobre os personagens reais de maior poder do país praticamente no momento em que ainda estão em total evidência. Fazer biografias não autorizadas, revelando estórias de alcovas de atrizes como Grace Kelly, Marilyn Monroe, Ingrid Bergman ou a mesma recém-lançada "Garbo" de Antoni Gronowicz (também editada há um mês pela Record), já mortas, é uma coisa.
Dar forma literária a confissões pessoais (e políticas-administrativas, sobretudo) de uma mulher vindo da classe média que decidiu jogar merda no ventilador é outra coisa. Portanto, não é sem razão que mesmo jornalistas e críticos que sempre viram com simpatia a prosa amena e simpática do autor de "O Encontro Marcado" (1956, já em sua 60ª edição), venham atacando-o de forma tão violenta, perversa e injusta como acontece desde que os primeiros exemplares de "Zélia, uma paixão" foram distribuídos às redações.
Será que Sabino precisava tanto assim de dinheiro para aceitar fazer este livro que tantos (sem tê-lo lido ainda) deploram? Afinal, aos 68 anos, completados no último dia 12 de outubro, com uma obra de 30 títulos - a partir de "Os Grilos Não Cantam Mais" (1941), praticamente todos em catálogo da Record, tem um rendimento mensal em direitos autorais que lhe permite uma vida folgada ao lado de sua bem amada Ligia Marina (a morena que foi a musa de seu amigo Antônio Carlos Jobim na obra-prima "Ligia"), Sabino há anos faz aquilo que mais gosta: viajar e ouvir o bom jazz, "até os anos 50", como sempre nos repete, cada vez que, em Curitiba, em nossa casa, assistimos os vídeos com os grandes jazzmen, que ele traz de Nova York.
Tendo deixado a colaboração regular na imprensa nacional - crônicas deliciosas que por mais de 50 anos encantaram milhões de leitores e cuidando profissionalmente de que seus livros encontrem sempre uma boa promoção, Fernando tem amigos em todas as partes. Uma das mais simpáticas e afetivas personalidades, Sabino está longe de ser o aproveitador que, injustamente, maldosos críticos tentam agora lhe impor. Ao contrário, é um homem de bem com a vida, cuja simpatia, bom humor e alegria o fazem um símbolo de otimismo - virtudes, aliás, que fizeram Zélia, ao conhecê-lo melhor, passar a admirá-lo ainda mais (como milhares de adolescentes brasileiros, "O Encontro Marcado" havia sido uma leitura definitiva para sua formação intelectual), especialmente após tendo recebido-o para um almoço em Brasília.
Um amizade que nasceu espontaneamente, sem interesses de parte a parte - e que fez com que Zélia, antes mesmo do rompimento final com Bernardo Cabral, lhe tivesse convidado para escrever o livro sobre a sua vida, após ouvir as várias opções de desenvolvê-lo, que a seu pedido, Sabino lhe colocou.
Pode-se discutir a forma com que usou para produzir em apenas 45 dias um livro tão problemático como este - naturalmente observando aquilo que Zélia queria dizer, e, obviamente, evitando confrontos. Não é - e o próprio Sabino deve reconhecer isto - o melhor texto de sua obra, mas está longe de ser um trabalho medíocre.
Chega a ser quase jornalístico, pela citação de nomes e datas fundamentais, claro e didático na explicação do jargão técnico - evitando o abominável economês - e, sobretudo, emotivo em sua parte final. Se os primeiros dos 27 capítulos ficam na quase descrição da menina e adolescente Zélia, a partir das 60 últimas páginas há uma dimensão humana, que mesmo com toques de melodrama (e não foi à toa que o astuto Augusto Mazzagão já propôs a compra dos direitos para uma telenovela no México) não deixa de refletir um lado passional e escrachado do comportamento do brasileiro.
O que irrita - e faz tanto ódio coletivo convergir à Zélia, é a fragilidade com que se exibe uma mulher que foi comparada a Margaret Tatcher, a Dama de Aço do ex-Império Britânico - revelar o seu lado fêmea, mulher assumida, de relacionamentos não oficiais - quando o Brasil, nestes dois últimos anos, mergulhava na mais profunda crise econômica, que levou a um desânimo, tristeza e desespero.
Uma coisa é certa: com todas as críticas - pessoais, literárias e profissionais - que Zélia, uma paixão, pode merecer - e olhe que elas não tem sido poucas - o fato é que o fato de uma mulher assumir uma obra como esta - seja por vaidade, desejo promocional ou vingança - não deixa de revelar que mais do que bandeiras ridículas e queima de soutiens em praças públicas - o sexo feminino há muito deixou de ser o sexo frágil. Muito pelo contrário.
LEGENDA FOTO - Fernando Sabino: um encontro - que não havia sido marcado - com Zélia, uma amizade e o resultado um livro nitroglicerina que todos criticam antes mesmo de sua leitura.
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