Etílicos referenciais para a humana arte do encontro
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 14 de junho de 1992
O que pode fazer de um bar-restaurante, pequeno, localizado no Leblom, no Rio de Janeiro, inaugurado há 25 anos, ser tema para um robusto livro de 301 páginas, lançado por uma editora nacional (Record) e interessar a milhares de leitores que possivelmente nunca o frequentaram ou o frequentarão regularmente - chegando, alguns, no máximo, a assustadas passagens pelo local com a timidez de forasteiro?
Aquilo que poderia ser apenas um registro efetivo, cordial e íntimo de um microcosmo de nomes mais (ou menos) conhecidos pela imprensa, televisão e atividades na música, cinema, teatro e literatura, ganha, entretanto, uma dimensão especial nas páginas de "Antonio`s - Caleidoscópio de um bar", que o (ex) homem de teatro, publicitário e jornalista, Mário de Almeida acaba de publicar, tendo o lançamento, naturalmente no próprio Antonio`s, no último dia 21 de maio, uma terça-feira, com todo a badalação que o ambiente comporta.
Entretanto, isolado de seu contexto carioca, urbano e regional, "Antonio`s-Caleidoscópio de um bar" é mais uma contribuição que se dá aquilo que, bem humoradamente se poderia classificar de "literatura e documentação do botequim brasileiro". Há algumas semanas, aqui dedicamos nobre espaço dominical à "Na mesa do Vilariño", do jornalista, radialista, homem de tv, compositor e sobretudo grande biriteiro Fernando Lôbo - hoje mais conhecido como o pai do Edu (Lobo), mas que, entre os anos 40/50, foi parceiro de figuras maravilhosas da MPB e autor de grandes sucessos. Assim como na "Mesa do Vilariño" (também editado pela Record e com boa vendagem, ao que nos informa o representante local Carlos Alberto, carioca hoje exilado na noite curitibana), este "[Caleidoscópio] de um bar" é o exemplo daqueles livros com sabor da melhor bebida e dos bons pratos, que se degusta com a mesma felicidade com que seus históricos - e normalmente conhecidos - clientes fiéis, ali faziam uma das melhores coisas da vida: o papo descontraído, amigo e, naturalmente, etilice, especialmente em fases que o doce passará de juventude, liberto das gaiolas de regimes e tratamentos médicos que a idade traz, permitia (te) todos as suaves sublimes loucuras de uma época em que todos nós vivemos. Assim como o grande escritor (e, naturalmente, bem de copo) Bem Hecht (1892-1964), escreveu que a juventude é um país lindo, eu sei porque um dia eu lá vivi, poderia-se dizer que na vida de todos nós, ao menos machistamente assumindo uma visão, sempre houve (houveram) um (ou mais) bar (es) em que, de convívio com os companheiros e conhecidos ocasionais ou não, entre inteligências e chatos, se moldaram estórias & histórias que, hoje são lembradas com carinho.
Feliz o bar que, passados os anos, encontra um ex (ou mesmo fiel) freguês, [com] alguma sensibilidade para os registros escritos das coisas, ganha a forma de livro. O curitibano Valério Hoerner, 49 anos, advogado e incansável garimpeiro de nossa história, foi o primeiro entre nós a se acorajar a fazer um livro sobre um dos mais tradicionais endereços da boemia curitibana - único a resistir há 63 anos ("O Folclorico Bar Palácio", 1982, 94 páginas, edição do autor, ainda a venda no próprio "Palácio").
Mais recentemente, enquanto Nireu Teixeira, ex-jornalista de muito humor em seus textos - hoje circunspecto e um tanto aborrecido nas burocráticas funções de Secretário Municipal do Governo - reunia crônicas fraternas falando de amigos com passagens por vários bares da cidade, que ele frequentava quando esta cidade era mais feliz ("Esperto Corrido", edição da Fundação Osires de Brito), a Brahma encomendava a um grupo de biriteiros (alguns nem tanto) mais jovens, entre jornalistas curitibanos (alguns de adoção) textos sobre uma dezena de bares e restaurantes da cidade "O Rio tem o mar, Curitiba tem o bar", homenageando já no título o poeta Paulo Leminski), lançada numa edição de circulação dirigida, que infelizmente, não encontrou maior repercussão.
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Existem milhares de bares, alguns também restaurantes - que independente da qualidade de sua cosinha e diversificação em sua clientela, tem condições de justificar livros a respeito. Não pelo estabelecimento em si, mas, sobretudo, pela fauna humana que o frequente - pois um bar é feito da inteligência, simpatia e sobretudo estórias de seus clientes.
Assim, o Palácio, com toda sua modéstia - e certa rudeza em termos de cardápio e ambiente (ao menos até se mudar para a nova sede, em 4 de setembro de 1991) independente do trabalho de Valério, pode justificar novos livros, e o um de seus fiéis clientes dos anos 30/40, o jornalista Freitas Netto, por exemplo, tem algumas divergências em relação a pesquisa de Heerner. Em compensação, restaurantes sofisticados, caríssimos e que mesmo autopromovendo em colunas sociais, nunca conseguiram justificar um livro - às vezes, sequer uma crônica - [expontânea]. Um exemplo é o Ile de France, que se aproximando de 40º aniversário, por ser um estabelecimento classe "a", com clientela endinheirada (novos e alguns velhos ricos), corre o risco de só ganhar algum registro se os seus proprietários (família Lecoque) decidir financiar um projeto. Expontaneamente, dificilmente alguém fará uma crônica de amor ao Ile de France, como Valério fez para o velho, esfumaçado mas querido Palácio, [Fernando] Lobo dedicou ao hoje desaparecido bar do Vilariño e, agora, Mário de Almeida dedica ao Antonio`s. A diferença está na cordialidade, na inteligência e na forma [como] estes - e por certo centenas de outros endereços (e cada cidade, por menor que seja, deve ter o seu bar ou restaurante histórico) nasceram com o astral positivo. Que se faz com a boa qualidade dos serviços, a simpatia dos proprietários, mas, principalmente o charme a inteligência do publico que o frequenta.
Com razão - carradas delas - Mário de Almeida lembra Vinícius de Moraes - um dos fregueses mais fiéis do Antonio`s - para justificar sua teoria: o bar, como a vida, é a arte do encontro.
LEGENDA FOTO 1 - Apesar de desfocada, a foto vale pelo time que Paulo Garcez documentou numa noite no Antonio`S: Paulo Mendes Campos, Rubem Braga, Fernando Sabino, José Carlos Oliveira, Vinícius de Moraes, Sérgio Porto e, deitado Chico Buarque. Com fregueses como estes, qualquer bar ficaria famoso...
LEGENDA FOTO 2 - Um time da pesada, nas noites do Antonio`S: o proprietário Manolo, arquiteto e cronista Marcos de Vasconcelos, Nelson Motta e Chico Buarque (bem jovens), o grande Lúcio Rangel e Roberto Sardinha.
LEGENDA FOTO 3 - Henfil, o publicitário Magaldi, Mário e Aures Almeida - ele o autor de Antonio`S - Caleidoscopio de um bar",
LEGENDA FOTO 4 - O cronista José Carlos de Oliveira - que marcou época nas páginas do "Jornal do Brasil" - entre Adolpho Bloch, Ana Rosa e Christina Gurjão (na época sra. Vinícius de Moraes), na varanda do Antonio`S, quando do lançamento de um de seus livros - escritos no próprio bar.
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