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Aramis

Cartola, um Lp definitivo dentro de nossa melhor mpb

"Conheci Cartola pessoalmente quando ele abriu o Zicartola em 1964, creio, num sobradinho da Rua da Carioca. Desde então sou sua fã. Considero Cartola uma das figuras mais importantes da [música] popular brasileira. Quando Elizeth Cardoso canta o "Sim", fico arrepiada. Mas Cartola tem tanta [música] para dar, que penso em outras muitas ... Não é exagero dizer que o Zicartola foi o berço onde a MPB se ressuscitou. Duvido que haja [alguém] que ouça Cartola sem encantamento". (Eneida de Moraes, 1903-1972) Quando Ricardo Cravo Albim, o bom amigo a quem a música popular brasileira tanto deve pelo seu trabalho frente ao Museu da Imagem e do Som - que dinamizou no período em que o dirigiu, comunicou-me pelo telefone que Cartola havia aceito o convite para participar do [júri] que escolheria a melhor escola no carnaval Curitibano de 1974, fiquei feliz. Pois se em 1972, Ricardo já havia trazido, ao lado de outros nomes da maior expressão, o pioneiro Ismael Silva, fundador da primeira Escola de Samba do Brasil ("Deixa Falar", 1929), este ano os sambistas curitibanos tinham o mérito de serem julgados por outro homem admirável da MPB, também profundamente ligado [à] História do Carnaval. Pois embora tenha começado a se organizar em 1928, a Estação Primeira de Mangueira não recebeu de início a designação de escola de samba - nome surgido no Estácio, onde a Deixa Falar se propunha a ensinar o bom samba à cidade. Logo depois, outras organizações semelhantes passaram a usar também o nome de Escola: a Escola Estação Primeira, portanto, foi a segunda escola de samba do Rio de Janeiro. Além de ter escolhido o nome, foi Cartola quem deu a idéia do verde e rosa para as cores da agremiação. Entre muitos outros componentes da escola, destacavam-se Saturnino Gonçalves (1º presidente), Marcelino José Claudino, Francisco Ribeiro, Pedro Caymmi (1º secretário) e, obviamente, Carlos Cachaça e Cartola. "Chega de demanda" foi o samba de abertura da Estação Primeira. xxx Cartola - que só descobriu que se chamava Angenor de Oliveira - e não Agenor, como pensava - no dia de seu casamento, quando precisou da certidão de nascimento, completará no dia 11 de Outubro, os seus 66 bem vividos anos. E só agora, ele fez o seu primeiro disco - uma obra-prima, já com lugar cativo entre os 10 melhores do ano - e que foi produzido por um paulista [admirável] pelo seu amor pela nossa melhor MPB: Marcus Pereira. Ao inaugurar oficialmente o seu [catálogo] como produtor profissional, Marcus Pereira - que desde 1967 vinha realizando excelentes lps como brindes de fim-de-ano para os clientes de sua agência de publicidade - soube incluir ao lado da magnífica coleção "Música Popular do Centro-Oeste/Sudeste"(4 lps), e os lps da fadista Paula Ribas ("Fados Brasileiros") e de Oswaldinho da [Cuíca] e o Grupo Vai-Vai ("Vamos Sambar"), este maravilhoso e histórico disco de Cartola. Assim como Ismael Silva, seu velho amigo, Cartola é um homem simples, que ainda não se habituou com uma [glória] que demorou tanto para chegar. Pois apesar de sua íntima ligação com a melhor música popular brasileira , só nos últimos 10 anos é que o grande público começou a tomar conhecimento do trabalho deste poeta e musicista inspiradíssimo, que em 1964 teve o seu samba "O Sol Nascerá" (feito em parceria com Elton Medeiros) lançado por Narra Leão. Merecendo posteriormente inesquecível interpretação da dupla Elis Regina-Jair Rodrigues e a seguir divulgada em dezenas de gravações, o triunfo dessa composição é devido em boa parte à força de sua linha melódica, tida pelos comentaristas como uma das mais engendradas da música popular brasileira nos últimos anos. Carioca do Catete (nasceu [à] rua Ferreira Viana, 74), quando tinha onze anos, os pais de Cartola - Sebastião Joaquim de Oliveira e Ada Gomes - transferiram-se para Mangueira. Antes disso, porém, o menino já havia tomado contato com os festejos populares do Rio. Os grupos de pastorinhas, organizados pelas famílias, desfilavam no dia de Reis. Fantasiados e munidos de cavaquinho e violão, os familiares de Cartola organizavam todo ano um bloco de pastorinhas. As irmãs iam vestidas de cigana., ele de satanás ... xxx Nas 48 horas que Cartola esteve em Curitiba na sexta-feira, sábado e início da madrugada de domingo de Carnaval, tive uma felicidade rara: ouvir bastante este poeta [admirável] - cujos versos podem ser comparados ao que de melhor existe em nossa literatura embora ele mal tenha concluído o primário (das muitas escolas que freqüentou só se lembra da primeira - a Rodrigues Alves, no Catete. Depois, sempre empurrado pelo pai, passou por vários grupos escolares, de onde acabava e sempre expulso. Quando Dona Ada morreu, o pai mandou Angenor tratar da vida . Com Synval Sylva - outro sambista [admirável], sobre quem falaremos em outra ocasião, a sensível cantora Alayde Costa, mais Ricardo Alvin, seu amigo Amaro e a [simpática] Maria da Gloria, e mais o bom amigo Luciano Lacerda - double de industrial de sucesso e sensível estudioso de nosso cancioneiro, tive também uma oportunidade que nunca esquecerei: após um jantar amigo, ouvir Cartola, com o seu violão, descontraído, mostrar três horas de [música] inéditas, todas da mais absoluta beleza, sinceridade e harmonia, enriquecidas por sua voz suave. Uma comprovação definitiva de que não há dúvida de que, como o [próprio] reconhece, foi ele o grande mestre e inspirador de Paulinho da Viola (Paulo Cesar Baptista Faria, 31 anos). xxx Aos 15 anos, sem ter onde dormir, o rapaz Angenor não se apertou. Ficou pelas madrugadas no Rio, iniciando-se na boêmia e na malandragem. A experiência adquirida com o cavaquinho do pai assegurou-lhe um lugar no Bloco dos Arengueiros, agora com violão. No ano seguinte já faria o seu primeiro samba, "Chega de demanda" que nunca seria gravado. Mas como boêmia nunca deu camisa a ninguém, Angenor foi trabalhar numa tipografia, onde ficou pouco tempo. Logo passava para a construção civil, onde se sentia a vontade:L Assoviava, cantava e mexia comas moças ("e às vezes dava sorte ..."). Aquilo sim que era emprego, mas tinha um inconveniente: o pó do cimento que caia em sua cabeça. Por isso ele arranjou um chapéu-côco, e daí nasceu o apelido - CARTOLA - que o marcaria pelo resto da vida. Angenor cuidava muito bem do chapeuzinho, escovava-o à noite, e no dia seguinte lá estava o operário de chapéu-côco encarapitado nos andaimes, olhando as moças. Do encontro com Carlos Cachaça - que seria seu mais constante parceiro de composições e boêmia - nascera o Bloco dos Arengueiros. Aos poucos, os fundadores do grupo carnavalesco resolveram ampliá-lo, formando a segunda escola de samba do Rio. xxx Cartola está na categoria dos maiores poetas da Música Popular Brasileira. De sua longa [vivência] popular - a exemplo de Ismael Silva fez muitos sambas para Francisco Alves (1898-1952) soube recolher um sensível equilíbrio entre a ternura, o amor, a dor-de-cotovelo, no mais brasileiro dos ritmos - o nosso Samba - com um trabalho de tanta sensibilidade e beleza que, tem poucos paralelos (e de Nelson Cavaquinho, outro de seus grandes amigos é um dos poucos que me ocorre). Por exemplo, este seu inédito "Cordas de Aço", que é publicado pela primeira vez na imprensa: Aí, essas cordas de aço esse minúsculo braço do violão que os dedos meus acariciam Ai esse bojo perfeito que trago junto ao meu peito Só você violão compreende Violão porque perdi toda a alegria Mas no entanto o meu pinho poder crer eu adivinho Aquela mulher até hoje está nos esperando solta o teu som da madeira. Eu, você e a companheira A madrugada iremos para casa cantando. Em 1933, Cartola formou um conjunto vocal e instrumental com os compositores Wilson Batista (1913-1968) ("Emilia", "Deus no céu e ela na terra", "O Seu Oscar") e Oliveira da [Cuíca] - o primeiro cuiqueiro do rádio. Pretendia excursionar pelo país, mas chegaram só até Barra do Pirai, Estado do Rio. O trio durou pouco, e Cartola continuou compondo e praticando sua tarefa predileta: a boêmia. Em 1940, o Maestro Leopoldo Stokowski (Londres, 1882) veio ao Brasil, com a Orquestra Sinfônica da Juventude Americana e resolveu fazer algumas gravações de música popular brasileira. Além de Pixinguinha (Alfredo da Rocha Viana, 1898-1973) foram lembrados outros nomes, entre os quais o de Cartola. O próprio Villa-Lobos (1887-1959) foi buscá-lo no morro para a gravação, que seria feita a bordo do "Uruguai", ancorado no cais da praça Mauá. Participaram da sessão alguns dos nomes mais representativos da época: Donga, Zé da Zilda, João da Baiana, Jararaca e Pixinguinha, Cartola compareceu com "Quem me vê sorrir" (parceria com Carlos Cachaça). Nos Estados Unidos, em dois [álbuns], as [músicas] saíram pela Columbia, e Cartola recebeu a miserável quantia de 4 mil réis ... xxx Considerada por Cartola sua melhor composição - do que muitos divergem - "Divina Dama" foi composta na quarta-feira de Cinzas de 1934, quando após conhecer uma jovem num baile e com ela brincar toda a folia, terminado o carnaval ficou sabendo que a moça era noiva de outro. Tudo acabado E o baile encerrado Atordoado fiquei Eu dancei com você Divina dama Com o coração queimado em chama xxx CARTOLA DESCOBRIU; ENFIM; QUE ERA VANTAJOSO DESCER O MORRO: Para um compositor, era essencial estar na cidade, entrosar-se com artistas, conhecer o ambiente. Cantando suas composições e as de outros autores, começou a se apresentar em várias estações de rádio: Educadora, Philips, Cruzeiro do Sul. Junto com Paulo da Portela fez um programa "A Voz do Morro". Apresentavam mensalmente um samba de sua autoria, para os ouvintes darem o nome. Dono de boa voz participava de gravações na Columbia (hoje Continental), cantando nos coros que acompanhavam Araci Cortes, Moreira da Silva, Ratinho: Mas esta atividade não duraria muito e logo voltaria à sua velha MANGUEIRA; ONDE SEMPRE FOI AMADO E RESPEITADO POR TODOS: Gravações como "Na floresta" (Silvio Caldas, RCA, 1932), "Não faz, amor" (Francisco Alves, Odeon, 1932), "Não posso viver sem ela" (Odeon, 1941), rendiam-lhe poucos mil-réis. Seus muitos outros sambas, sempre esperando gravação, ficavam sendo conhecidos apenas pela gente do morro. xxx Em 1961, todas as sextas-feiras tornara-se programa obrigatório para os sambistas uma chegada [à] casa de Cartola. Por lá apareciam Zé Keti ("Acender de velas", "Diz que fui por ai"), Elton Medeiros ("Uns por tanto", "Pecadora"), Paulinho da Viola ("Recado", "Jurar com [lágrimas]", Jair do Cavaquinho, Anescar Bigode-Anescarzinho de Salgueiro - com muita cerveja, e ajudado pelos quitutes de Zica, o samba ia até altas horas. Nessa época, a [recém]-surgida Bossa Nova, estava descobrindo a [música] do morro, e o Zicartola foi um dos mais importantes pontos de encontro entre o samba tradicional e a [música] que despontava na Zona Sul do Rio. As composições de Cartola voltaram a ser gravadas: Nara Leão lançou pela Philips "O Sol Nascerá" (1964), Elizeth Cardoso gravou "Sim" na Copacabana (1965). Em 1968, a I Bienal do Samba, patrocinada pela TV Record de São Paulo, Cartola classificou "Tive Sim" um de seus mais bonitos e [nostálgicos] sambas. Tive, sim Antes do teu Tive, sim O que ela sonhava Eram os meus sonhos E assim Íamos vivendo em paz ... xxx Tão repentino quanto o sucesso foi o declínio de Zicartola. A moda ia passando, os artistas se dispersavam, a casa começava a ficar vazia. Nelson Cavaquinho, o humilde poeta-andarilho da cidade, foi um dos últimos a deixar o Zicartola. Ficou até o fim, cantando muitas noites para as mesas vazias. E o Zicartola acabou. xxx Forte e bem disposto aos 68 anos, vivendo de seus direitos autorais e eventuais shows, Cartola continua a compor peças preciosas de nosso cancioneiro. Um rápido retrospecto - com base nos textos do fascículo 17 da "História da Música Popular Brasileira" (abril, 1971), é necessário para situar este extraordinário poeta e criador, no registro civil Angenor de Oliveira, para todo e sempre, CARTOLA, O REI DA MANGUEIRA, com alguns o adjetivam. xxx O disco que gravou para Marcus Pereira, realizado em sessões nos dias 20/21 de fevereiro e 16/17 de março último nos [estúdios] da RCA - Victor, na GB, com produção e direção de [estúdio] de J.C. Botezeli (Pelão), arranjos e regência do maestro Horondino José da Silva - o Dino do grupo "Época de Ouro", está entre os lps definitivos da MPB. Acrescentando-se a um [repertório] praticamente [inédito] (apenas 3 faixas já eram conhecidas: "Sim", "Tive Sim" e "O Sol Nascerá"), Cartola, com sua bonita voz (como acontece com Paulinho da Viola, fica-se sem saber se é melhor o compositor ou o [intérprete]), é acompanhado por um grupo instrumental do melhor nível: Dino, arranjador e regente, no violão de 7 cordas; Jayme Thomas Florêncio (Meira), violão, Waldiro Frederico Tramontano (Canhoto), cavaquinho; Raul Machado de Barros, trombone; Nicolino Cópia, flauta; Gilberto D'Avila, surdo e pandeiro; Nilton Delfino Marçal, cuíca e caixa de fósforo; Roberto Bastos Pinheiro (Luna), Tamborim e agogô; Jorge José da Silva, Pandeiro e caxixi; Wilson Canegai, Ganzá e reco-reco e Joab Lopes Teixeira (Coro). Por mais que se tente é difícil dizer qualquer a melhor faixa. Todas as [músicas] de Cartola (e isto acrescentamos as 50 outras que ouvimos na [véspera] de Carnaval, numa sessão particular da qual não ficou, infelizmente, [sequer] um registro em cassete) são perfeitas em estrutura, poesia e musicalidade. Por isto, a escolha para este lp deve ter sido tarefa difícil. De qualquer forma ouvindo-se o "Disfarça e Chora" (parceria com Dalmo Casteli), "Sim" (parceria c/ Oswaldo Martins), "Corra e Olhe o Céu" (parceria com Casteli), "Acontece", "Tive Sim", "O Sol Nascerá" (c/ Elton), "Alvorada" (c/ Carlos Cachaça e Hermínio Bello de Carvalho), "Festa da Vinda" (c/ Nuno Veloso), "Quem Me Vê Sorrindo" (c/ Carlos Cachaça), "Amor Proibido", "Ordenes e Farei" (com Aluizio Dias) e "Alegria", o público que ainda não conhecia o mestre Cartola, descobre um [gênio] de nossa cultura popular e por apenas Cr$ 35,00 adquire um dos lps dos mais importantes já gravados no Brasil. Uma obra-prima de nosso MPB. LEGENDA FOTO: Cartola, 68 anos de bom Samba
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Nenhum
Música Popular
28
07/07/1974
Normalmente os [colchetes] servem para preencher uma elipse que, por algum motivo, quem reproduz o [texto] acredita que dificultará a percepção do [mesmo]. Mas este [texto] simplesmente não faz [sentido] sem o conteúdo dos [colchetes]. Veja por [exemplo]: "Nos Estados Unidos, em dois [], as [] saíram pela Columbia, e Cartola recebeu a miserável quantia de 4 mil réis ..." [Bizarro].

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