Em Brasília, "Carlota" é o filme para intelectuais
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 18 de outubro de 1987
Brasília
Como todos os longas em competição nesta vigésima edição do mais antigo dos festivais do cinema brasileiro já são conhecidos da maioria dos jornalistas e críticos que aqui se encontram, desde quinta-feira, o interesse maior, em termos de informação está em alguns curtas recém concluídos e, especialmente, no média metragem "Amorosidade/Carlota", que praticamente concorre sozinho em sua categoria - média em 16mm (o outro média-metragem em disputa é "A Lenda do Pai Inácio", do baiano Pola Ribeiro, já visto no XV Festival do Cinema Brasileiro de Gramado). Não faltam motivos para fazer de "Carlota" um filme de maior interesse. De princípio, é o segundo média-metragem de Adilson Ruiz, 37 anos, paulista, professor de cinema na Universidade de Campinas, e que, no ano passado, levou cinco dos principais prêmios com outro média-metragem - "Infinita Tropicália" - seu filme-tese para o curso de mestrado em cinema. Em segundo lugar, "Carlota" é talvez o mais intelectual e ambicioso projeto intelectual dos últimos anos - transpondo contemporaneamente a tragédia "Werther" (Die Lieden des Jungen Werther) que Johann Wolfgang von Goethe (Frankfurt, 1749-Weimar, 1832) publicou há 213 anos - mas através de uma linguagem baseada nos "Fragmentos do Discurso Amoroso", do semiólogo, crítico literário e escritor francês Roland Barthes, como diz Ruiz:
- "Carlota" é a síntese de uma grande história de amor e uma magnífica reflexão sobre o amor.
Enquanto "Infinita Tropicália" - exibido tanto em filme (cine Lido I) como o vídeo (mostra no CEFET/UFP) durante a I Mostra do Cinema Latino-Americano do Paraná, há 12 dias, quando Rui esteve em Curitiba, adquire agora ainda maior interesse - dentro das comemorações dos 20 anos do Tropicalismo, este seu novo filme tem todas as condições de ocupar, amplos espaços na imprensa nacional para apreciações ensaísticas.
A proposta de Ruiz é assumidamente intelectual e confessa que não espera recuperar os Cz$ 3 milhões que gastou em sua realização - parte veio da Embrafilmes, parte com recursos próprios, mais a ajuda da unicampo (sessão de equipamentos, estúdios e materiais diversos), Novotel (que hospedou e alimentou a equipe) e a Câmara Press, que gentilmente produziu o farto material fotográfico usado no filme ("afinal nosso Wether é um fotógrafo).
Trabalhando em cinema há 15 anos, em diferentes funções (por exemplo, foi em "O Homem que Virou Suco"), já em 1973 fazia suas primeiras experiências em curtas como "Hay Fiesta?", assumindo depois preocupações políticas em "Foi Assim" (1976, sobre as eleições) e "De Repente... João Quindingues e Zé Francisco em São Paulo" (1978), Ruiz desenvolveria em "Infinita Tropicália" o mais perfeito documentário sobre a MPB nos anos 60/70, com entrevistas de participantes do movimento, incluindo uma participação do artista plástico Hélio Oiticica, um de seus grandes teóricos.
Admitindo que tanto "Infinita Tropicália" como "Carlota" são experimentos enquanto não se lança num longa-metragem (trabalha simultaneamente em dois roteiros: "Na Boca do Sapo" e "Grilados", este com maiores conotações sociais), Adilson não nega o intelectualismo deste seu novo trabalho.
- Bem no mínimo é um filme que exige que o espectador saiba ler e escrever, pois há muitos letreiros...
Mais do que ser alfabetizado, o espectador para absorver toda a proposta de Ruiz necessita conhecer o mínimo do clássico de Goethe e também as idéias de Barthes - autor, aliás, que há dois anos, também inspirou outro realizador; Maurício Farias (filho de Roberto), 25 anos, apaixonado pelas propostas desenvolvidas em "Fragmentos do Discurso Amoroso" (que no início dos anos 80, virou livro-moda nos meios intelectuais) realizou "A Espera", com Marília Pera - um dos três curtas premiados no XIV Festival do Cinema Brasileiro de Gramado, também trazido ao Lido, na I Mostra do Cinema Latino-Americano. Aliás, informalmente, houve um encontro do Maurício e Ruiz, quando foi projetado, em sessão privada, "Carlota" - e os dois jovens cineastas trocaram idéias sobre a visão de cada um em torno de Barthes, semiologia e o cinema. Agora, estes dois filmes podem constituir um excelente programa para exibição dirigida a estudiosos de semiologia e literatura. A professora Cassiana Lacerda Carolo, da Cadeira de Literatura Brasileira da UFP e especialista na obra de Barthes, já se animou até em promover uma exibição especial dos filmes de Maurício e Adilson - mas isto só em 1988.
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"Carlota" possibilita inúmeras leituras e interpretações, justamente por partir de idéias de um autor como Barthes, que reinventa/retrabalha a palavra e seus significados. De uma forma mais simples, Adilson Ruiz prefere definir seus filmes como "uma a ficção experimental em que o documentário é subjetivo, com a objetiva voltada para dentro da cabeça do espectador".
O filme (45 minutos, excelente fotografia em cores de Katinha Coelho, formada pela ECA-SP), abre com um big-close up dos lábios da atriz Maria Alice Vergueiro dizendo um texto de Roland Barthes. As imagens se sucedem, com uma montagem dinâmica, efeitos em cores e preto-e-branco, silhuetas, uma esmerada cenografia e figurinos da arquiteta Marisa Rebello (prêmio Mambembe-85, melhor cenografia teatro infantil). Apenas três intérpretes principais: Chiquinho Brandão como Wether, (vindo do grupo Ornitorrinco), Ceres Ramos, como Carlota (este é o seu quarto filme, entre os quais "Além de Paixão" de Bruno Barreto) e José Rubens Chasseraux.
Numa primeira visão, "Carlota" pode sugerir, pela sua linguagem revolucionária e imagens de grande beleza, referencial a "O Ano Passado em Mariembad" que Alain Resnais, então com 41 anos, realizou em 1961, logo depois de seu maior sucesso, "Hiroshima, Meu Amor". Claro que as concepções de Alain Robbe-Grillet - roteirista de "1 Année Derniére e Mariembad" - e Barthes são diferentes, mas é apenas uma referência. Ambos são filmes voltados ao intelecto, verdadeiros puzzles para o público e que jamais chegam a uma platéia normal. O filme de Resnais praticamente nunca teve exibição comercial no Brasil e Adilson Ruiz tem plena consciência de que não só pela metragem, mas também pela sua própria linguagem, "Amorosidade/Carlota" destina-se a ter projeções apenas junto a círculos muito especiais embora já esteja acertado sua apresentação num programa especial da TV-Cultura, de São Paulo.
Apesar de todo o intelectualismo e linguagem fragmentada do "Carlota", Ruiz diz que ao transpor a trama de "Werther" para os nossos dias - fazendo do trágico amante um romântico fotógrafo (originalmente era um pintor) e a caseira e bucólica Carlota transformando-se numa sensualíssima modelo fotográfico, procurou mostrar que "os encontros e desencontros dessas personagens, sempre mirados pelo olhar de Roland Barthes, são a substância neste filme".
Acrescenta:
- "O que diferencia a proposta de "Carlota" é a aposta nas possibilidades inventivas do cinema. Iniciando com o percurso terminal do personagem Werther (os momentos que antecedem o seu suicídio), o filme compõe-se de fragmentos de suas lembranças e devaneios. Esses fragmentos tecem uma narrativa que conduz o espectador por uma trajetória inusitada, que faz do prazer do cinema um exercício de inteligência dos mais agradáveis."
Da abertura do filme com a utilização de uma das arias da ópera homônima de Jules Massnet (1842-1912), estreada em 1892, até citações de temas populares contemporâneos, "Carlota" é também um filme musical como diz o seu diretor Ruiz.
- "Isto é, um filme que, em vez de usar a música apenas para criar climas, explora o potencial narrativo das canções que fazem parte da memória de várias gerações. É musical também na medida que prescinde dos diálogos, colocando em seu lugar os mais diferentes tipos de canções. Foram utilizadas 23 canções, cada uma estabelecendo uma relação diferente com as imagens, ajudando o entendimento da trama ora através das letras, ora através das melodias".
Se um Festival de cinema deve trazer ao lado da produção destinada ao circuito comercial, também obras de experimentação, polêmicas e difíceis, o Festival de Brasília tem, este ano, em "Carlota" o seu cult-movie. Um filme de 45 minutos, com uma adaptação literária assumidamente diferente de tudo que foi realizado. O público pode abandonar a sala em que este filme-proposta esteja em exibição. O elogio ou a crítica feroz - mas o fato é que Adilson Ruiz, depois de um documentário claro, quase didático como "Infinita Tropicália" (cujo roteiro, em forma de livro, constitui complemento de sua tese de mestrado em cinema) sacode o aturdido cinema brasileiro neste final de ano. Na explicação de seu filme, afirma com humildade mas decisão:
- "Não tenho a pretensão de ser considerado gênio. Pelo contrário: ao fazer uma verdadeira tradução de linguagens, em vez de uma mera adaptação, pode ser até bastante simples. O segredo é saber superar as aparências do que está dito (a historinha que é contada) e decifrar a essência de como está dito - o trabalho artístico e os recursos formais e estilísticos, sem os quais não existe nenhuma história para se contar".
LEGENDA FOTO 1 - O diretor Adilson Ruiz e Ceres Ramos
LEGENDA FOTO 2 - Atrizes Ceres Ramos e Claudia Moras em "Carlota" - um média metragem de linguagem intelectual e renovadora, em sua primeira exibição no Festival de Brasília. (Foto Maurício Farina).
LEGENDA FOTO 3 - Chiquinho Brandão, o trágico Werther contemporâneo em "Carlota/Amorosidade", filme mais intelectual do ano - (Foto David Patarra).
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