Faces de emoção & amor
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 20 de maio de 1979
Vestida de branco, com uma iluminação suave, Alaíde Costa está só na arena do Paiol: O som que os espectadores escutam nem parecem ser terrenos. A capela, cantando a "Bachianinha nº 5", é tudo emoção, ternura, encantamento. No céu, por certo, o velho Villa-Lobos - cujo 20º ano de falecimento comemora-se este ano - por certo deve estar feliz, ele que sempre soube entender a aproximação entre o erudito e o popular e buscou colocar em sua obra musical todo este imenso Brasil. Ao escolher as "Bachianinhas nº 5", para Alaíde abrir o show "Faces" (Teatro do Paiol, hoje, 21 horas, última apresentação), a diretora Ligia Ferreira, não poderia ser mais feliz: para uma cantora da dimensão vocal desta mulher extraordinária, 23 anos de carreira quase uma dúzia de elepês, as canções suaves, com harmonias que preenchem espaços, funcionam como suaves mãos acariciando ouvidos/faces. Só os primeiros cinco minutos de "Faces" já velariam a ida ao Paiol para se assistir a este belíssimo espetáculo que marca, praticamente, uma nova fase desta casa de espetáculos. Após cantar à capela, emocionalmente, o violão perfeito de Paulo Jorge, parceiro e amigo querido de João Nogueira, muitos quilômetros de estrada musical, ampara à interpretação de "Mentira de Amor", onde Alaíde revisitando esta antiga canção de Klecius Caldas e Armando Cavalcanti, lhe dá uma nova leitura dramática. E os momentos de amor & paz, desamor & solidão, vida & luta continuam nas canções seguintes, cada uma mais bela que outra - num repertório-síntese do que de melhor se tem criado na música brasileira nestes últimos anos.
Depois é Antonio Adolfo, o pianista-compositor que nos últimos 3 anos balançou as regras do jogo fonográfico ao provar as possibilidades do próprio criador produzir e industrializar a sua obra, através da auto-edição de discos, que entra no palco. Mostrando suas músicas mais recentes, do lp "Viralata" - 3ª produção alternativa - e mesmo dando um breve trailer do curso de introdução pianística que bolou e que vai realizar na sala Funarte, no Rio de Janeiro - e que bem poderia ser realizado em Curitiba - Antonio Adolfo, filho de uma violinista da orquestra do Municipal, uma carreira de muitas pancadas e vivências, mostra ter atingido um ótimo estágio artístico. Sua música é segura, densa - e nada lembra mais os tempos inconseqüentes da "Pilantragem", quando ao lado de Tibério Gaspar, faturava muito, mas nada acrescentava a si, artisticamente, ou a criação musical brasileira. Agora, ao contrário, liberto de mecanismos empresariais, feliz, [tranqüilo], Antonio Adolfo não é apenas um compositor-instrumentista da maior dimensão, como um líder do movimento de produção alternativa fonográfica, tema que será debatido num encontro promovido pela Secretaria de Cultura, no próximo fim de semana, em Curitiba, quando aqui estarão também Luli e Lucinha e Danilo Caymmi, entre outros que também se lançaram na aventura de autoproduzirem seus discos.
Finalmente, é Sidney Miller, que entra no palco. Um jovem compositor e cantor que até então nunca antes tinha se apresentado em Curitiba - ocupado durante mais de 6 anos com a direção da Sala Corpo e Som do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, que coordenou até o trágico incêndio daquela instituição, fazendo músicas para teatro e cinema e com apenas 3 elepês gravados ao longo de 12 anos de carreira. Se a obra musical de Sidney Miller pode ser reduzida quantitativamente, qualitativamente, é da maior qualidade: "Pede Passagem", "A Estrada e o Violeiro" (melhor letra no III Festival da MPB, 1968), "Pois, é, Pra Que" (um dos mais sofridos retratos musicais dos anos 60, amarga e filosófica ao mesmo tempo), a lírica "O Circo", são momentos que mostram que Miller é um compositor que faz o que sente, com todo feeling, toda a alma.
Alaíde Costa, Antonio Adolfo e Sidney Miller, isoladamente ou juntos num espetáculo musical que, a partir do título - "Faces", traduz momentos dos mais ternos da nossa música brasileira. Talvez o que mais [encaixe] nas duas horas deste show seja a sinceridade com que cada um destes artistas - mais o violinista Paulo Jorge - colocam na transmissão ao público. Por exemplo, quando Sidney Miller canta "Pois é, Pra Quê?" - e Alaíde Costa, em contracanto, diz "Azulão" (Jayme Ovalle/Manuel Bandeira) parece que se encontra aquela ponte, muitas vezes que cremos inexistente, de comunicação entre as pessoas: de um lado, o pessimismo, o quase desespero de toda uma geração (a música de Miller foi feita em 1968, logo após a morte do estudante Edson Luís no Calabouço) em contraposição à poesia e a suave esperança azul de Bandeira, que teve em Ovalle - um homem tão admiravelmente grandioso em sua vida & vivências, como desconhecido das novas gerações - uma tradução perfeita na curta, mas eterna, obra-prima que é este canto ao pássaro azul.
Ligia Ferreira, que apesar de ser um dos braços-direito de Hermínio Bello de Carvalho, na coordenadoria de Projetos Especiais da Funarte - onde Miller também atua, como coordenador da Feira Pixinguinha - vem encontrando na direção de shows um caminho dos mais válidos. Aquele que foi, em nosso entender, o melhor dos espetáculos de toda a série Pixinguinha - reunindo a mesma Alaíde, mais o violonista Turíbio Santos e o flautista Copinha e conjunto - já havia sido por ela coordenado. Depois fez outros espetáculos e trabalha, atualmente, num novo show, com Braguinha, que encerrará, no final de junho, a Feira Pixinguinha, em Brasília. "Faces", cuja estréia aconteceu durante o Verão Funarte, em Brasília, e depois teve uma temporada no Teatro Casa Grande, está entre os momentos musicais iluminados, gratificantes, que faz com que as esperanças renasçam e se encontre nas palavras e nos bons motivos para se sorrir novamente e acreditar no próximo - mesmo sabendo que as porradas, as traições e os desencantos são inevitáveis. Mas como diria Anne Frank, em seu diário: ainda é necessário crer na humanidade.
Ou, mais apropriadamente: ainda é preciso ouvir, cantar e amar. Com faces iluminadas de doçura.
LEGENDA FOTO - Alaíde, sempre a mesma emoção.
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