A MEMÓRIA (FILMADA) DE "70 ANOS DE BRASIL"
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 26 de abril de 1975
"Um dos mais importantes documentários sobre o Brasil estará em exibição no Cinema I/Sala Scala a partir de segunda-feira: "70 Anos de Brasil". Reunindo trechos de cine-jornais e documentários, o cineasta Jurandyr Noronha realizou um grande painel, um grande mural, onde importantes acontecimentos são revividos dentro de uma organização narrativa que procura contar uma história em cinema do que o cinema registrou de nossa História, neste século. "70 anos de Brasil" tem pré-estréia no sábado à meia-noite, e no domingo será apresentado para historiadores e professores. Segunda-feira inicia sua carreira normal, com 4 sessões diárias.
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Em julho do ano passado, no Recife, durante o IV Encontro dos Pesquisadores do Cinema Brasileiro, o público que compareceu numa das sessões organizadas por Lucila Bernardete, no Cinema do Parque, ficou deslumbrado com fragmentos de um cine-jornal rodado em 1922, mostrando algumas cenas dos festejos do Centenário da Independência. Aquele raro documento era uma das preciosidades reunidas pelos pesquisadores da memória filmada brasileira - que em várias partes do Brasil e enfrentando as mais diversas situações, vêm desenvolvendo um notável trabalho de preservação do pouco que resta de documentos visuais feitos neste século. Infelizmente, a maior parte dos cine-jornais e documentários se perdeu - pela desatenção de seus produtores, que nunca tiveram, reconhece-se, qualquer apoio oficial para preservá-los. Um exemplo disto está em nosso Estado: as centenas de cine-jornais e documentários produzidos nos últimos 30 anos, quase todos pagos pelo governo do Estado, estão esquecidos em salas escuras, sem qualquer cuidado para sua preservação. E se, na época, não passavam de filmes promocionais, hoje já adquirem um especial significado, como memória animada de nossa vida pública nestes últimos anos.
Dos filmes do pioneiro João Batista Groff, pouco restou e, felizmente, graças à visão de seu filho, o engenheiro Luiz Groff, a Fundação Cultural de Curitiba pôde recuperar parte [deste] material, fazendo reduções em 16 mm, que já foram apresentadas, várias vezes, na Casa Romário Martins e agora serão projetadas na sala de exibição do Museu Guido Viaro - (com muita justiça batizada com o nome de Arnaldo Fontana, em homenagem ao crítico de O ESTADO, tão prematuramente desaparecido).
A importância dos cine-jornais e documentários do passado, desprezados e esquecidos por décadas, poderá ser avaliada agora, com o lançamento do longa-metragem "70 Anos de Brasil", realizado por Jurandir Noronha.
Como acentua a sra. Hanny Rocha, diretora do grupo Cinema I, que distribui o filme, "70 Anos de Brasil", reveste-se de especial importância. Realizado por Jurandir Noronha, um dos nossos mais atuantes pesquisadores, o filme é único em seu gênero: um documentário de longa-metragem, com uma hora e dez minutos de duração, resultante de uma exaustiva prospecção pelo que sobrou de nossa memória cinematográfica. Noronha, com a [colaboração] de Julio Heilbron e Eduardo Ruegg, trabalhou cinco anos na produção do filme, examinando entre 600 a 800 latas de película e visitando nove Estados. A grande fonte em que se apoiou foram o documentário cine-jornal, sendo que as nossas mais antigas fitas [preservadas] estão em "70 Anos", inclusive uma reportagem sobre uma comemoração da Independência, feita por Alfonso Segreto, o primeiro cinegrafista a filmar no Brasil. O mesmo pioneiro fez outra filmagem, aproveitada por Noronha, que dá grande interesse ao filme para os paranaenses: a parada de 7 de Setembro de 1909, mostrando a passagem do 5º Batalhão de Caçadores da Polícia Militar do Paraná, no Rio de Janeiro. Infelizmente, nada mais foi encontrado do muito que Alfonso Filmou desde o dia 19 de junho de 1898, quando, voltando da Europa - no navio Brêsti - aproveitou para registrar com sua câmara cinematográfica alguns aspectos da Baia de Guanabara.
Jurandir Noronha, 59 anos, desde 1929l ligado a uma câmara - "Comecei com uma 9 1/2 mm, ainda de calças curtas" - é um dos homens de sete instrumentos do cinema brasileiro. Já trabalhou em fotografia, som, montagem e praticamente todas as tarefas do laboratório Mineiro de Juiz de Fora, apaixonado por cinema desde menino, tornou-se cinegrafista de [reportagens] para a Tupi Filmes e a Cinédia, passando a documentarista na FAN (Filmes Artísticos Nacionais), e, mais tarde, no INCE (Instituto Nacional de Cinema Educativo). Foi um dos colaboradores da histórica "CineArte" e em 1944 foi assistente de Luiz de Barros em "Berlim na Batucada", produção de Ademar Gonzaga, que reuniu Procópio Ferreira, Francisco Alves, Dalva de Oliveira, Chocolate e Fada Santoro.
Em "70 Anos de Brasil", estão reunidas cenas que mostram heróis e gente do povo. É Rondom que aparece, é a lembrança de Osvaldo Cruz, Santos Dumont, Getúlio Vargas, Washington Luiz. É Anésia Pinheiro, recebendo seu "brevet" de aviadora, em 1922; é a primeira corrida de automóveis realizada entre nós. É o jogo de futebol entre o Paulistano e o Palestra-Itália, realizado em 1909; é a I Guerra Mundial; é Sacadura Cabral e Gago Coutinho, na primeira travessia do Atlântico Sul; é a semana da Arte Moderna de 1922; Padre Cícero, Lampião; a revolução constitucionalista de 1932. É o petróleo e o café. Para fazer este painel dos acontecimentos brasileiros, Noronha reuniu os filmes operados por pioneiros como Alfonso Segreto, Alberto e Paulinho Botelho (que andaram por Curitiba, nos anos 20, fazendo um documentário sobre erva-mate, infelizmente perdido, patrocinado pela família Leão Júnior). João e Fernando Stamato, Luís Thomas Reis, Silvino Santos, Gilberto Rossi, Benjamin Abrão (o mascate que com seu Kinarmo fez, nos idos de 26, o único filme sobre Lampião e seu bando, aproveitado já no curta "Memória do Cangaço" (65), de Paulo Gil Soares), Edison Chagas, Antonio Medeiros, Fausto Muniz, Pedro Neves, Ramon Garcia, Costa de Macedo, Alberto Kennedy, Rodolfo Lusting e Ortiz Rubin, além do próprio Noronha, que fez, entre outras, as filmagens da despedida da FEB que ia lutar na Europa, na II Grande Guerra.
Noronha nos leva e reencontrar os ídolos populares do esporte, da música, do cinema e do teatro: Carmem Miranda, Francisco Alves, Grande Otelo, Oscarito, Mesquitinha, Pedro Dias, Cacilda Becker e tantos outros.
Funcionários do INC, onde hoje dirige o setor de distribuição de filmes educativos, Jurandir Noronha já realizou duas outras antologias importantes: "Panorama do Cinema Brasileiro" em 68, e "Cômicos e Mais Cômicos", em 70, este com possibilidades de vir a ser apresentado em Curitiba, na próxima semana, em sessão especial. O lançamento de "70 Anos de Brasil", fez com que muita gente que tinha velhos filmes nos sotões e garagens, procurasse Noronha, que agora já está pensando um novo documentário sobre a Belle Epoque e onde inclusive, utilizará algumas cenas feitas por Groff. No campo da ficção, seu projeto é um longa metragem inspirado no romance "Clara dos Anjos", de Lima Barreto, "mas sempre com um fundo documental".
"70 Anos de Brasil" é um filme historicamente importante. Um filme para ser visto por todos que se interessam pela história contemporânea e que justifica que os professores do ensino médio - tão pródigos em exigirem trabalhos de absurdas "pesquisas" de seus alunos recomendem aos estudantes. Isto sim é motivo para pesquisa e debate. Um filme, que, com felicidade, foi definido pelo veterano romancista e cinéfilo Otávio de Faria: "Todo um Brasil que vivemos dia-a-dia, e que vemos ressurgir entre nós, na tela [mágica] de uma autêntica criação, revivida pela compreensão, pelo amor e pela devoção sem par desse esplêndido cineasta-documentarista que é Jurandyr Passos Noronha.
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