Nei Lisboa, o marginal assumido do som gaúcho
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 19 de fevereiro de 1989
Há mais ou menos cinco anos o gaúcho Nei Lisboa esteve em Curitiba, estimulado por sua amiga Cida Moreira (que, louve-se, foi a primeira a reconhecer seus méritos) e fez uma frustrante temporada no Teatro da Classe. Menos de 30 pessoas apareceram nas três noites em que ali esteve.
Hoje não será fácil acertar uma programação com Nei Lisboa em qualquer de nossos teatros. Mesmo sem ter atingido ainda a condição de Superstar já é um nome nacional, reconhecido como compositor e intérprete dos mais originais. Um autor que como André Forastieri ("Folha de São Paulo, 14/12/1988) faz composições que Elis Regina adoraria gravar se estivesse viva.
Como Forastieri lembrou, Nei como Belchior e o Cazuza da fase Barão Vermelho, carrega com saltitante orgulho a cruz de ser "maldito". Suas letras têm trechos como "Eu sou alcóolatra/anarquista/estudante/estuprador/ e escrevo poesias nas horas vagas" ou "Mas já não ligo pra essa porra/ a vida é uma gangorra, funcionando mal".
Óculos ao estilo John Lennon e com um título entre a provocação e o humor ("Hein?"), Nei Lisboa em seu quarto LP (EMI-Odeon) ganhou um espaço amplo na impressa nacional - ele que teve de amargar produções independentes em seus dois primeiros discos. Curiosamente, embora não faça rock - ao contrário busca uma linha entre o humor e o deboche, com pitadas românticas - há quem insista em lhe atribuir um influência sobre vários grupos de rock do Rio Grande do Sul, especialmente os Engenheiros do Hawaii (por sinal, com novo LP na praça, edição BMG/Ariola). Em recente entrevista, Nei procurou esclarescer esta questão:
- "Eu sei que sou um cara da MPB, nunca fui roqueiro. De alguma forma eles me escutaram, pois eu caí na estrada há muito tempo, já fiz muitos shows e gravei dois LP's independentes. Fiz meu público à margem da mídia, por única e exclusiva culpa minha. Como o rock é uma coisa que apareceu nos últimos tempos aqui no Brasil, de dentro - por jogada das gravadoras - eles, no caso os Engenheiros do Hawaii, tinham medo de serem vistos como mais uma jogada também e acorreram a mim para ter credibilidade. Foi muito isso. No fim das contas terminou como sendo apenas mais uma jogada".
Em seus dois primeiros discos - os independentes "Para Viajar no Cosmos Não Precisa Gasolina" (1983) e "Noves Fora" (1985), Nei trazia um material de maior voltagem, mais ligado ao humor - e neste seu novo LP abusa às vezes de alguns recursos óbvios. Não deixa, entretanto, de apresentar um humor marginal - porque não citar como referência Tom Waits, embora o seu trabalho seja muito anterior ao surgimento do marginal trovador americano entre nós - como na própria música que dá título ao elepê ou nas faixas "Faxineira" ou na longuíssima "Baladas".
Mau gosto em algumas imagens? Pode ser. Mas é interessante observar não só em Nei como em outros letristas da safra surgida nos anos 80 um sintoma de novo comportamento em face da liberdade cada vez maior - com utilização de termos que, há alguns anos, jamais se imaginaria numa canção.
Antes que lhe acusem de plágio, Nei Lisboa esclaresce na contracapa do disco: "Faxineira" foi inspirada em "Houselady", de Brownie McGhee - mas adaptada, naturalmente a partir de seu início, quando faz o apelo a "Faxineira/fascinante/onde guardaste o papel/que eu deixei na estante/anteontem/é importante/é o telefone que o Mutuca me deixou de uma garota de Brasília".
Na multiplicidade musical do Rio Grande do Sul, Nei é uma demonstração de que nem só de nativismo vive o som dos pampas. Ao contrário sua música está muito mais para a claustrofobia urbana do que para a saudável planura verdejante.
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