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Aramis

O Norte sem glamour numa peça perfeita

Um espetáculo como "Bodas de Café" (Auditório Salvador de Ferrante, hoje e amanhã, 21 horas) deveria, obrigatoriamente, ser visto por todos os paranaenses. Sendo impossível, ao menos se deveria dar ao grupo Proteu da Universidade Estadual de Londrina condições para manter essa peça em repertório e levá-la ao máximo de cidades possíveis. A razão é simples: trata-se de uma das mais sérias, vigorosas, emocionantes e bonitas peças já apresentadas em nosso Estado. Montada a cargo de um grupo amador, com um custo de apenas Cr$ 5 milhões, alcançou os objetivos pretendidos, colecionou elogios em todas as cidades visitadas (Rio, Brasilia, São Paulo, Londrina), em uma centena de apresentações, e, em termos de proposta teatral elaborada sobre uma realidade brasileira, vale mais que mil editoriais e discursos políticos. É a história ofíciosa - jamais oficial - que tem, no palco, a mesma coragem e sinceridade que o historiador José Joffily colocou no contundente "Londres/ Londrina"(Editora Paz & Terra). Uma peça que desmistifíca as glórias da colonização do Norte do Paraná, faz denúncias e críticas, mas sempre em alto nível, jamais tendo para o panfletário e o ataque mesquinho. Ao final, uma advertência: a gravidade do problema dos sem terra, o êxodo rural, a espoliação do homem do campo e a farsa das chamadas "novas fronteiras agricolas", que, em menos de 10 anos, expulsaram mais de 100 mil pessoas de suas pequenas propriedades. xxx Trabalhando com atores e atrizes amadores, obrigada, inclusive, a fazer substituições, para as constantes remontagens da peça, devido aos compromissos profissionais da equipe, Nitis Jacom de Araújo Moreira conseguiu, entretanto, resultados perfeitos. Os 31 rapazes e moças do elenco, todos verdadeiros coringas dos múltiplos personagens de "Bodas de Café", revelam grande segurança e a comunicação que falta a tantos que se dizem profissionais. Comparando-se, por exemplo, a "Bodas de Café", a frustadíssima "Colônia Cecília ", percebe-se a diferença entre uma peça criada com garra, amor e verdade, para uma superprodução oportunista, vazia, feita apenas para consumir milhões de cruzeiros. Um diretor competente (Ademar Guerra) e uma escritora com boa técnica de dramaturgia (Renata Palotina) frustraram a possibilidade de fazer um resgate da experiência anarquista desenvolvida na colônia Cecilia, trabalhando superfícialmente sobre o tema, que acabou transformando num mediocre musical, fracasso tão grande que eles próprios bombardearam a possibilidade daquele espetáculo ser levado a São Paulo (pois lá, a crítica possívelmente analisaria violentamente a montagem, que em Curitiba passou em brancas nuvens). Nitis trabalhou em "Bodas de Café" de forma oposta. Há 28 anos no Norte do Paraná (ver texto a respeito, nesta mesma coluna), fazendo um teatro de raízes e sempre com uma visão social, Nitis e os integrantes do grupo Proteu souberam retirar da história de Londrina o outro lado dos fatos. Desprezando o lado oficial e, assumidamente, "contando a estória dos que não deram certo", a peça tem na gente do povo seus grandes heróis: os camponeses, a prostituta Palmira Preta, o picareta de terras, (inspirado no lendário "Chandão "), o garçom do bordel que se transformou no maior empresário de transportes do Norte do Paraná e, especialmente, a fígura admirável do nordestino Manoel Jacinto (1911-1983), único dos personagens cujo nome real foi conservado, em homenagem à coerência e à dignidade desse líder camponês, comunista, preso mais de 30 vezes e que, no ínicio dos anos 50, liderou a famosa revolta dos agricultores em Porecatu. Os personagens de "Bodas de Café" passam uma extraordinária empatia ao público. Emocionam, comunicam, com aquela verdade simples que só as reais obras de arte conseguem colocar no palco e que fazem, justamente, a peça escrita e dirigida pela valorosa Nitis conseguir uma dose tão grande de emoção. Independentemente dos aspectos regionais, os acontecimentos locais, as citações de ruas, endereços e estabelecimentos dos anos 30 e 40, "Bodas de Café" consegue ser universal. Toda saga de colonização vem com um rastro de sangue, suor e lágrimas - que, na história oficial, até transforma vilões em heróis. Numa visão dialética, Nitis evitou criar heróis ou cair no maniqueísmo de bons e maus. E, com admirável coragem, não deixou de colocar o dedo na ferida e denunciar as torturas que se seguiram ao golpe de 1 de abril de 1964, a farsa da política econômica dos anos 70 que agravou a situação dos produtores rurais e a incerteza deste final de milênio, Nitis fez, aliás, uma peça de profundo equilíbrio político. Impressionante, também a competência de Nitis na carpintaria dramatúrgica, construindo uma peça que consegue sintetizar mais de meio século de acontecimentos numa linguagem dinâmica. Para não cair na monotonia esquemática que compromete as peças de narrativa histórica, Nitis preferiu utilizar recursos da metalinguagem através do próprio grupo de teatro, discutindo a criação da peça. O teatro dentro do teatro - fórmula já muito utilizada (por exemplo em "Um Grito Parado no Ar", de Guarnieri, ou "O Exercício", de Lewis John Carlino), integrou-se com perfeição nessa peça em que os efeitos de iluminação, criados originalmente por Fernando, filho de Nitis (responsável também pela cenografia), oferecem momentos da maior beleza, especialmente no primeiro quadro, sobre a presença dos índios da região. Há momentos do melhor musical, como quando da chegada do chamado "balaio das putas" (o avião que trazia prostitutas de São Paulo para os bordéis de Londrina) e, um final, em forma de grande baile, concebido muito antes do filme de Ettore Scolla chegar ao Brasil, mas com tanta beleza quanto essa obra cinematográfica. "Londrina", a enternecedora valsa de Arrigo Barnabé, é a música-tema da peça, mas na trilha sonora há várias canções regionais, perfeitamente identificadas com o espetáculo. Com a leveza de um musical, não esquecendo a poesia social (como os amargos diálogos dos lavradores espoliados), Nitis também tem a coragem de um Costa Gavras ao denunciar, nos últimos momentos, os trágicos números sobre o drama dos bóias-frias e dos sem terras do Paraná. Ante "Bodas de Café", os aplausos são coletivos: ao elenco perfeito, afinado, com a garra e a ardência dos sonhos da juventude; a narrativa inteligente, a cenografia e a iluminação. Enfim, um espetáculo nota 10, indispensável de ser visto. Possívelmente Nitis Jacom fará outros belos espetáculos teatrais (aliás, "Transgreunte, Ascendente, Aquarius - Uma Tragédia", a ser apresentada domingo, 18 e 21 horas, é uma proposta totalmente diferente), mas bastaria esse "Bodas de Café " para lhe dar um lugar de destaque na história do teatro brasileiro. LEGENDA FOTO 1 - O elenco de "Bodas de Café": elogio coletivo ao melhor espetáculo já apresentado no Guíra em 1985.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Nenhum
Tablóide
13/09/1985

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