Os Caymmis, esta família de luzes e cores musicais
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 19 de outubro de 1986
A velha escrava contava
Ai vovó aprendia
Vovó contava mamãe
Velhos casos que sabia
Velhas estórias da Bahia
(Dorival Caymmi, uma canção inédita só agora gravada: "Velhas Estórias").
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As canções são conhecidas desde a nossa infância. Crescemos ouvindo ele falar dos pescadores que morrem no mar - que é bonito, bonito; da Dora, rainha do frevo e do maracatu; da Marina, morena que já é bonita com o que Deus lhe deu; da vizinha do lado, que quando passa, com seu vestido de grená, todo mundo diz que é boa ou da Maracangalha, passárgada de sonhos e desejos.
Sim, as canções de Dorival Caymmi são nossas velhas conhecidas - identificadas ao maior dos compositores dos anos 40/50, autor de uma obra nem extensa demais, nem por demais reduzida. E por isto mesmo extremamente cuidada na qual é difícil, dificílimo, apontar qual o melhor momento.
Os 70 anos de Dorival Caymmi, há dois anos passados - em 30 de abril de 1914, na Rua do Bengala, depois Luís Gama, em Salvador, nasceu este baiano maior - não foram esquecidos, é claro! Incansável garimpeiro, um de seus maiores amigos, Hermínio Bello de Carvalho montou bonitas homenagens, com exposições mostrando seu (outro) talento maior - o de pintor de belos óleos e desenhos, edição de um álbum histórico, o lançamento em disco duplo de um concerto-solo que havia acontecido no teatro Castro Alves, em 30 de novembro de 1979.
No ano pasado, outro proojeto veio completar o festival Caymmi. O pesquisador Jairo Severiano, um dos mais organizados garimpeiros de nossa vida musical (o primeiro a entrar na era da informática, adquirindo um computador para armazenar suas preciosas informações), ao lado de duas jovens e entuasiastas pesquisadoras - Marília T. Barbosa e Vera de Alencar - (1) levou à direção da Fundação Emílio Odebrecht, um projeto até modesto: a edição de um livro sobre a vida e obra de Caymmi. Baianos e apaixonados pela obra de Dorival, os diretores da Norberto Odebrecht S/A - que há anos já vem fazendo excelentes edições culturais - não tiveram dúvida: toparam a proposta com uma condição: ao invés de um simples livro, o projeto deveria incluir dois elepês, com Caymmi cantando suas músicas. Resultado: no final do ano passado, ficava pronto o mais caro projeto-brinde musical já realizado no Brasil, com um livro contendo dezenas de ilustrações, muitas em cores, texto em português e inglês e dois elepês, um deles instrumental, outro apenas de Caymmi ao violão, valorizado por quatro depoimentos (2). Uma obra maravilhosa de distribuição restrita aos clientes, amigos e fornecedores da Norberto Odebrecht.
A FAMÍLIA QUE BRIGA UNIDA, CANTA UNIDA - Dentro do festival Caymmi insere-se, agora, um álbum mais simples e colocado à disposição de quem desejar adquiri-lo, mas igualmente magnífico - seguramente entre os 10 melhores discos brasileiros de 1986: "Caymmi's Grandes Amigos" (EMI/Odeon 31C964422.963, série luxo, setembro/86).
Parece até piada, que uma família tão musical, com filhos que se revelaram dignos herdeiros do patrimônio sonoro dos pais, tivesse demorado tanto a se reunir novamente. Exatamente 22 anos, desde aquela primeira visita que Aloysio de Oliveira, o nem sempre louvado grande patrono da MPB, patrocinou em 1964, quando "Caymmi visita Tom (e leva seus filhos Nana, Dori e Danilo)" , que resultou num dos melhores discos da antiga Elenco.
Pois é, agora, todos mais velhos, mais experientes - mas também ainda melhores, voltaram a se reunir para uma emotiva sessão musical que transpõe o ouvinte para um universo de magia e encantamento.
Nana (Dinair Tostes Caymmi, RJ, 29/4/1941), Dori (Dorival Tostes Caymmi, RJ, 26/8/1943) e Danilo (Cândido Tostes Caymmi, RJ, 7/3/1948), filhos de Stella Maris Tostes Caymmi, esposa deCaymmi desde 30/4/1940, que pelo amor à família interrompeu uma futurosa carreira de cantora, são criaturas iluminadas. Cada um, em si, construiu o próprio caminho musical - respeitosamente reconhecendo a influência paterna, mas sedimentando em pedras próprias a sua vereda.
Assim Nana é, para nós, a mais bela e dramática voz do Brasil, única em sua forma de interpretação. Dori, a voz que lembra o pai, esplêndido arranjador (o melhor na área de cordas) e compositor, com canções belíssimas. Danilo, o mais novo, flautista de mão cheia, também afinado cantor, um dos pioneiros do disco independente (3).
Personalidades próprias, cada um na sua, os irmãos Caymmi são tão talentosos quanto briguentos entre si. Reuni-los num espetáculo - como Hermínio tentou algumas vezes - é projeto difícil, já que o pau come entre eles. Mas se há divergências aparentes, quando juntos, o sangue artístico fala mais alto e a emoção é imensa. Por duas vezes - em fevereiro de 1975, quando das comemorações de inauguração do auditório Bento Munhoz da Rocha Neto (4), e sete anos depois, na segunda das três noites do evento Brasil de Todos os Cantos (maio/82), os curitibanos assitiram, ao vivo, os Caymmi no palco - em uma comunhão/integração musical que ficará, para os que ali estiveram, entre os mais belos momentos da música brasileira.
O mesmo clima de emoção daquelas noites - e que, muito raramente, repetiu-se em outras ocasiões - está neste maravilhoso lp "Caymmi's Grandes Amigos" - título meio gozativo sugerido por Nana e que nasceu há 2 anos, mas só se concretizou agora.
Como sintetizar num único elepê, toda a emoção de um gênio como Dorival?
A experiência de Nana, Dori e Danilo não só como intérpretes e criadores, mas também como produtores, valeu muito para encontrar o consenso ideal. O resultado é que CAYMMI'S GRANDES AMIGOS tem uma distribuição equilibradíssima do melhor do repertório do ilustre Pai - naturalmente presença de honra em alguns momentos.
Nana, por exemplo, ficou com "Dora" (samba-frevo, 1945), "João Valentão" (samba-canção, 1953) e com duas outras muito especiais: "Acalanto" (canção de ninar, 1941), só gravada pelo pai em 1957 e que, em 1960, em novo registro, marcou sua estréia no disco, em dueto com o pai. E a belíssima "Canção Antiga", seresta inédita composta há mais de quarenta anos, que tem por detrás a participação de Stella. - "Mamãe fez a direção no estúdio, me ensinou a cantar a música exatamente do jeito que papai queria" - conta Nana.
Stella, aliás, deveria também ter entrado no disco como cantora. Mas os planos foram frustrados: na hora Stella não quis gravar (aliás, o único registro que se tem de sua voz é a faixa "Canção da Noiva" em "Caymmi Visita Tom"). (Elenco MD-17)
Danilo, o caçula, aparece cantando sozinho em duas faixas. Na eterna canção praieira "O Mar" (1939) e em "Velhas Estórias", a outra inédita do LP - um samba, de 1984, rara parceria de Danilo, música, com letra do pai.
Dori aparece sozinho em uma única música e escolheu a ótima "A Vizinha do Lado" (samba, 1946). Juntos, Dori e Danilo dividem os vocais em "Peguei um Ita no Norte" (toada, 1945) e nos sambas "Requebre que Eu Dou um Doce" e "Vestido de Bolero" (respectivamente de 1941 e 1943), reunidos numa mesma faixa. Os dois irmãos cantam ainda, junto com o pai, a "Canção da Partida", a conhecidíssima primeira parte da "Suite dos Pescadores" (de 1965), já gravada anteriormente também com o título "Marcha dos Pescadores". E, completando o disco, os irmãos Nana, Dori e Danilo reúnem-se para cantar, na única faixa a três, "Das Rosas" (valsa-samba, 1964).
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A emoção que discos como este CAYMMI'S GRANDES AMIGOS traz é imensa. Na simplicidade de suas canções, da união de vozes fortes e marcantes, um documento afetivo num dos mais belos elepês do ano - tão necessário de ser ouvido nesta época de ruídos e fúrias da (pior) música descartável.
Notas
(1) Marília T. Barboza é uma das mais ativas pesquisadoras, com obras sobre Cartola, Donga e Pixinguinha já editadas pela Funarte. Vera de Alencar está fazendo o levantamento da obra de Antonio Carlos Jobim. O projeto "Caymmi - Som/Imagem/Magia" foi desenvolvido em 1985.
(2) Os depoimentos sobre Caymmi reunidos nos dois discos são de Jorge Amado, Antonio Carlos Jobim, Caetano Veloso e Carybé.
(3) Em 1978, Danilo gravou "Cheiro Verde", até hoje o seu único álbum-solo.
(4) Quando na Superintendência da Fundação Teatro Guaíra, Sale Wolokita (hoje diretor da TV Naipi, Foz do Iguaçu) promoveu uma grande mostra de MPB, com os maiores nomes. Paralelamente, aconteceu o I Encontro de Pesquisadores da MPB.
LEGENDA FOTO - A família que (en)canta unida: Danilo, Dori, Dorival e Nana
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